quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Esquerda, direita e em frente… A agonia do Capitalismo tal como o conhecemos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género. Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra «quem mais acumula» é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média.

Thomas Piketty e o seu "O Capital no Século XXI"
Esquerda, direita e em frente… A agonia do capitalismo tal como o conhecemos

Há dias uma jovem mestranda de ciência política discutia comigo as diferenças entre esquerda e direita que não entendia bem quais pudessem ser nos dias que correm.

Quem cresceu politicamente nos anos setenta, o apogeu do mundo soviético, em que o Ocidente parecia estar sob ameaça imediata e grave e o mundo à nossa volta parecia cair como peças de um dominó, não terá dificuldade em se lembrar e em entender a imensa diferença que fez a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Descobrimos que a alternativa ao comunismo e ao socialismo triunfantes não eram os regimes autoritários de direita, mas bem pelo contrário os regimes liberais e democráticos em que ansiávamos viver. Foi isso que descobrimos avidamente em Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, entre tantos outros.

Numa época de preços tabelados, controlo de câmbios e circulação de capitais restrita e sujeita a autorização prévia, de domínio da economia por grandes empresas públicas monopolistas, os anglo-saxónicos mostraram-nos o caminho da desregulamentação, da privatização dos monopólios públicos, da sensatez do alívio fiscal a particulares e empresas.

Numa década, entre 80 e 90, caíram os dogmas da economia dominada pelo Estado e caiu o muro de Berlim, ou seja, desagregou-se o império soviético. Com a banalização dos computadores, a criação da internet, descobrimos a globalização, a circulação irrestrita de capitais, mas também descobrimos que a globalização era uma estrada de dois sentidos que abria o mundo a todos e não só ao Ocidente.

A globalização foi o milagre económico da China que, com crescimentos piramidais de 10% ou mais ao ano, duplicava o PIB todos os sete anos… A globalização foi o milagre que tirou da miséria mais sórdida biliões de seres humanos, que transformou em países emergentes regiões do globo que estavam enterradas na mais profunda miséria e atraso económico e social.

Quando essa década fabulosa terminou, o mundo era outro de todos os pontos de vista, económico, cultural, tecnológico, com avanços totalmente inesperados e extraordinários em matéria de comunicações, acesso ao conhecimento e informação, facilidade de circulação por esse vasto mundo. Foi esse mundo que herdaram os filhos da minha geração, os chamados millenials, que nasceram no século passado e cresceram neste.

A primeira década deste século foi também a do euro, da subida em potência da China e do recuo da hegemonia americana, por um lado e, por outro, do capitalismo global, financeiro e desenfreado, cheio de “animal spirits”.  
Cada novo equilíbrio suscita novos desequilíbrios: depois da explosão da crise de 2008, uma capa da revista “The Economist” dizia tudo ao mostrar um leão ferido de morte sob o título “A agonia do capitalismo”.

Num curto espaço de tempo, passámos do triunfo dos neo-conservadores que proclamavam o fim da História num equilíbrio definitivo do capitalismo global, para a dúvida instilada por Stiglitz com o seu célebre “Globalization and its discontents”, em que o sistema ocidental a que a esquerda chama o “consenso de Washington”, que repousa na livre circulação de capitais, na protecção da propriedade privada, no Estado de direito, na legítima actuação de actores privados no palco internacional, na economia de mercado em suma, começou a ser posto em causa.

Durante anos, ouvimos a esquerda ocidental duvidar e condenar as reformas neo-liberais dos anos 80 e 90 do século passado, mas a aceitar que a globalização podia ser uma coisa boa. Com a crise de 2008, esse estado de espírito desapareceu: a linha divisória passou a ser entre os que procuraram controlar a despesa pública (os “austeritários” no dizer da esquerda) e repor as condições básicas de equilíbrio de funcionamento do mercado (os horríveis neo-liberais), e os que se definiam por ser “anti-austeridade” e fortemente redistributivos.

Na síntese brilhante de Miguel Angel Belloso, a diferença passou a ser entre os que que queriam redistribuir para crescer e os que queriam produzir e crescer para poder redistribuir. Essa batalha está em curso.

Neste meio-termo, dois novos ingredientes vieram complicar a discussão: por um lado, os apóstolos do regresso ao proteccionismo, dos “nós primeiro”, os populistas que apelam aos mais baixos sentimentos da população, aos egoísmos nacionais; por outro lado, uma já vasta literatura com Stiglitz, Krugman, Mark Blithe, James Galbraith, entre muitos outros, abriu caminho ao novo apóstolo do século XXI: Thomas Piketty, o autor do seminal “O Capital no Século XXI”.  
A tese de Piketty é simples: sem restrições, o sistema capitalista tende a concentrar nas mãos de um número cada vez menor de uma elite global um volume cada vez maior de dinheiro e de privilégios. A solução? Restringir essa acumulação progressiva, eliminar os privilégios de classe e casta. Uma causa seguramente popular, para não dizer populista. 
A desigualdade entrou no léxico político em força. Democracia é igualdade, logo desigualdade é… fascismo! Este é o novo silogismo político da esquerda.

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, sem liderança e sentido, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género e do que vier.

Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra “quem mais acumula” é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média. Também não tenho dúvidas de que a nível global é mais fácil destruir o esforço de décadas do que construir alguma coisa de novo.

É nestas confluências que vai decorrer o combate político dos próximos anos. O que pensam destas questões os nossos líderes políticos? Sem opções claras, não há escolhas claras.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.


Sem comentários: