quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Golpe no estado do sistema eleitoral

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
A articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos.


Golpe no estado do sistema eleitoral

Há golpes para todos os gostos: golpe de asa, exclusivo de poucos; golpe de sorte, que escolhe alguns; golpe de azar, de que todos se queixam; golpe de vista, invocado para chamar aos outros ceguinhos. E também há diversos estados: o estado crítico, associado normalmente ao golpe de azar; ou o estado da nação, dependente do golpe de vista à esquerda ou à direita, consoante o poder do momento. E há ainda o estado de sítio, consequência natural de um golpe de Estado, que é normalmente atribuído a civis militarizados ou a militares incivilizados insatisfeitos com o estado da nação, e que consiste em tomarem o poder de forma a conformá-lo com o seu golpe de vista. Felizmente que esse tipo de golpe anda longe dos costumes portugueses, já que os nossos militares são bem civilizados e os civis estão bem longe de ser uns militarões. E creio mesmo que gente da mais preocupada com assuntos militares, como os membros da Comissão de Defesa do parlamento, nem sequer andaram na tropa e só virtualmente saberão o que é uma arma. Aliás, segundo as teses mais avançadas, nem o próprio 25 de Abril foi um golpe de Estado, pois revestiu-se de uma natureza eminentemente superior, a de revolução. 
Aqui chegados, ao 25 de Abril, a Constituição deu um golpe, agora de morte, na anterior lei eleitoral e estabeleceu um sistema adequado a dar representatividade democrática aos partidos, mas só a estes, considerando apenas círculos plurinominais e optando pela proporcionalidade, método de Hondt, todavia eliminando candidaturas independentes, vetando círculos uninominais e excluindo outras formulações mais ou menos usadas nas democracias parlamentares. 
Se o modelo provou o seu mérito nos primeiros anos, com o decorrer do tempo veio a mostrar que contribuiu decisivamente para dar aos diretórios partidários o controlo do pessoal político, mormente dos deputados, começando logo pela escolha dos mais fiéis em detrimento da competência e do contributo que outros pudessem dar ao país. A fidelidade pessoal passou a ser o centro da avaliação e da escolha. Por isso é que, legislatura após legislatura, não há remodelação sensível da classe política: repetem-se as mesmíssimas personagens, as ideias cristalizam, consolidam-se as rivalidades pessoais que impedem consensos necessários, impera a violência verbal. E o efeito está no afastamento dos cidadãos da política e na elevada abstenção. A perdurar este estado de coisas, a ideia de democracia sairá ferida de morte.  
Para a própria sobrevivência da democracia representativa, urge alterar o sistema eleitoral para o parlamento, criando um outro que imponha um cuidado acrescido e critérios de competência na seleção dos melhores candidatos e atribua aos eleitores um efetivo poder na escolha dos deputados. 
E é possível atingir aproximação substancial a tal objetivo através da introdução de círculos uninominais, previstos na revisão constitucional de 1997, mas nunca regulamentados. A introdução destes círculos, ao provocar uma viva concorrência direta entre os candidatos, obrigaria a uma escolha que privilegiaria a competência dos mesmos e a sua dedicação ao serviço público, em detrimento da fidelidade pessoal ou política, propiciando assim uma efetiva capacidade de escolha aos cidadãos. E a articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos. As vantagens seriam óbvias: o eleitor votaria no deputado que julgava mais competente e no partido com que se identificava, a proporcionalidade mantinha-se e o parlamento representaria de forma justa cidadãos, território e correntes políticas. 
Esta mudança tão simples e exequível já para as próximas legislativas seria um virtuoso golpe de Estado no sistema eleitoral ou, para os mais pacifistas, um virtuoso golpe no estado da lei eleitoral que, a permanecer tal e qual, nos levará a um verdadeiro estado de sítio em que os cidadãos, por sua própria iniciativa, se absterão de sair de casa para votar. 
A SEDES e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade estão no combate por esta reforma, tendo entregue recentemente um memorando sobre o tema ao senhor Presidente da República, visando a sua discussão pública. Oxalá os nossos partidos tenham, já não digo um golpe de génio, difícil nas circunstâncias, mas pelo menos um golpe de asa para a acolher. E poderem sobreviver.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i

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