quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Estava tudo a correr tão bem

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído ontem no jornal i
O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea.


Estava tudo a correr tão bem
“A húbris é um conceito grego que pode ser traduzido como ‘tudo o que passa da medida; descomedimento’, e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que com frequência termina sendo punida.” (citado da Wikipédia).

Entre junho de 2011 e outubro de 2015 foi lançada uma campanha de ódio contra o governo de coligação AD que teve a sua “consagração” com a grandiosa manifestação contra a TSU que uniu contra o governo desde as mães de família da burguesia urbana até aos operários da cintura industrial.

Apesar dessa campanha de ódio, o PSD e o seu presidente, Passos Coelho, conseguiram em outubro de 2015 uma vitória eleitoral ao serem o partido mais votado nas eleições; com o país partido ao meio e ansioso por virar a página, António Costa e o PS conseguiram dar a volta ao resultado e montar uma frente de esquerda com apoio maioritário na Assembleia da República.

A partir daí foram só boas notícias para o governo e desastres para a oposição: na frente social caiu uma calmaria regada a euros do Orçamento do Estado; na frente económica tivemos dois anos de crescimento razoável, queda do défice, estabilização aparente da dívida e saída do patamar de lixo em que as agências de notação nos tinham colocado. E Portugal ganhou o Euro 2016. Estava tudo a correr tão bem!...

Mesmo no trágico incêndio de Pedrógão Grande, o governo conseguiu reequilibrar-se rapidamente, deixando a Marcelo Rebelo de Sousa a despesa da consolação dos povos e a confirmação de que tinha sido “feito tudo o que podia ser feito”…

Foram encontrados com rapidez e a preciosa ajuda de uns tantos fazedores de opinião os culpados do tremendo incêndio: o SIRESP e os eucaliptos. Pronto, tendo sido feito tudo o que podia ser feito e havendo culpados óbvios, o governo estava absolvido e as boas notícias continuaram a fluir ao longo do Verão.

Entretanto, António Costa fez saber que ia proceder à maior reforma da floresta desde o tempo de D. Dinis, no século XIII (depois da tragédia de outubro, temos de convir que já conseguiu: o Pinhal de Leiria, plantado por D. Dinis, ardeu quase todo).

O início de setembro ainda trouxe a Costa novas e mais excitantes boas notícias: segundo as sondagens e os comentadores, teve retumbante vitória autárquica, ampliando as maiorias absolutas em Lisboa e no Porto e… parece que conseguiu mais 1,5% de votos que há quatro anos… e que ganhou dez câmaras ao PCP…

Como a primeira regra de um bom spin é a de não deixar os factos atrapalhar uma boa notícia, ninguém se deu ao trabalho de retificar a ideia da fabulosa vitória de 1 de outubro. Estava, portanto, tudo a correr tão bem!...

O que não estava nos cálculos de António Costa era que chovesse uma semana tarde demais, mas foi o que aconteceu e, tragédia, voltou a arder tudo o que podia arder e, mais uma vez, não foi feito nada do que devia ter sido feito. As mesmas falhas de junho, a mesma falta de coordenação, a mesma falta de prevenção, de cuidado, de autoridade útil, a mesma falência do Estado.

Depois de terem demonstrado aos pobres humanos que todos os cálculos são pó, os deuses fizeram chover ainda muita coisa ardia, mas só depois de terem morrido mais umas largas dezenas de pessoas e de ter ardido o coração de Portugal.
Arrogando-se da vox deo na sua versão de vox populi, surgiu Marcelo a castigar a húbris do governo costista, a exigir-lhe humilhação e confissão dos pecados, e Costa, o equilibrista, pareceu ceder, demitiu a ministra, avança com reformas. 
Se quisermos simplificar, foi a húbris de António Costa e do seu governo, a falta de humildade democrática, que causaram a desgraça. Se tivessem escutado o muito que havia para dizer sobre estas matérias, se não tivessem embandeirado em arco com os sucessos fáceis do governo, se não estivessem convencidos de que tudo se resolve com meia dúzia de palavras e de milhões de euros, se tivessem a convicção firme de que democracia é diálogo e respeito mútuo, talvez muito daquilo que aconteceu pudesse ter sido evitado.

Para além das mortes, das perdas materiais quantas vezes sem solução à vista para o modo de vida de quem as sofreu, da tremenda perda que todos sofremos, fica a sensação de que este é um governo para o bom tempo, para quando as coisas correm de feição, e não para crises ou dificuldades, e é isso que é aterrador, a sensação de se ficar a falar sozinho, de os avisos caírem em saco roto, de que quem está em posição de mandar não ouve nem quer saber.

Entre um governo que não ouve ninguém e só finge ouvir o Presidente e uma oposição à deriva, cada qual enquistado nos seus pequenos ódios e frustrações, quem são os mediadores que nos representam perante o poder instituído? Onde estão os nossos representantes, não os das oligarquias partidárias, não os ungidos dos diretórios, mas os nossos, aqueles que nós escolhemos e que responsabilizaremos se falharem em representar-nos?

O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea. Queira Deus que o Outono e o Inverno nos tragam um reforço da sociedade civil e da nossa capacidade de afirmação, reclamação e indignação.


João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Equívocos e clarificações necessárias

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.

Há necessidade de uma força no centro do leque político, essencialmente reformista, que acredite na economia de mercado e no papel decisivo do setor privado.



Equívocos e clarificações necessárias 
No contexto da crise por nós vivida nos últimos tempos, assistimos a uma grande controvérsia, geradora de vários equívocos, entre os que pugnavam pelo crescimento económico como fator determinante para ultrapassar a crise e os defensores da primazia da austeridade, nomeadamente no domínio das finanças públicas, com vista ao mesmo objetivo. Presentemente alcançou-se um relativo consenso de que uma certa austeridade é necessária, como pré-requisito para conseguir o crescimento. Como é óbvio, tal não implica que toda a austeridade seja aceitável, do mesmo modo que haverá que assegurar que o imprescindível crescimento é sustentável.

Esta perspetiva é particularmente relevante no contexto atual, em que o governo, mas também muitos de nós, nos regozijamos com os resultados mais recentemente alcançados pela economia portuguesa em termos de crescimento, redução do desemprego, melhoria do défice orçamental, da balança das transações externas e da dívida pública e, consequentemente, do rating do país. Mas será que todos estes resultados traduzem uma situação sustentável?

Com efeito, é por demais evidente que o país está a beneficiar da conjuntura económica extremamente favorável na esfera internacional, decorrente das políticas globalmente prosseguidas com vista a ultrapassar a crise financeira de 2008-2011. Isto não significa que as medidas governamentais adotadas entre nós de então para cá, e em particular no período mais recente, não tenham dado o seu contributo. Significa tão-só afirmar que sem as reformas estruturais necessárias e há muito identificadas, mas não concretizadas, não será possível alterar para o futuro o paradigma de comportamento que caracteriza a evolução económica no pós-25 de Abril.

Reconhecer isto é absolutamente crucial, na medida em que, se o nosso crescimento económico não melhorar significativamente e de forma sustentada, não haverá convergência com o padrão europeu nem melhoria sustentável nas condições de vida dos portugueses. Não chega pugnar por equidade e solidariedade. O “bolo” é atualmente demasiado pequeno para fazer face aos anseios da população. No limite poderá haver melhorias em franjas da população, com repercussão na distribuição de rendimentos, mas em detrimento de uma classe média que possa ser pujante e maioritária, sendo esta que constitui o suporte de uma sociedade mais justa e mais próspera. Que reformas, com que prioridades, como as concretizar e apoiadas por quem são aspetos a necessitar de urgente clarificação.

Não é este claramente o local para tratar destes aspetos. Mas é patente que entre estas reformas há que incluir a do sistema eleitoral, a da justiça e do papel do Estado (incluindo a função pública), a promoção do investimento, emprego e competitividade, nomeadamente através de uma abrangente reforma fiscal e do mercado do trabalho, com vista a maior eficiência e eficácia na gestão da coisa pública, designadamente através da regulação e do incentivo à inovação, bem como nas áreas sociais (saúde, educação, segurança social). Um tal processo de reformas, abrangente por natureza, exige obviamente um largo consenso no quadro de um desígnio para o país, mas é igualmente patente que o processo se encontra bloqueado. Os sucessivos apelos feitos por individualidades políticas ou oriundos da sociedade civil, no sentido de serem firmados pactos com esse objetivo, resultaram infrutíferos. Urge, pois, uma clarificação a nível partidário que torne possível desencadear e pôr em marcha este projeto de índole nacional.

Neste contexto convém, aliás, ter presente que os partidos existentes são, em larga medida, fruto da “ordem salazarista”, à data do 25 de Abril – inclusive à esquerda, com o domínio do PCP vindo da clandestinidade e defensor do centralismo do Estado e da economia de direção central. Com a chegada da Revolução dos Cravos surgiu, naturalmente, a necessidade do aparecimento e institucionalização de partidos políticos, com vista à implementação da democracia. É neste quadro que surgem o Partido Socialista (PS) – que havia sido criado em 1973 na Alemanha, por Mário Soares e um conjunto de personalidades integradas na Ação Socialista – e o Partido Popular Democrático (PPD), com base em personalidades da “ala liberal marcelista”, sob a égide de F. Sá Carneiro. Algum tempo depois surge o Centro Democrático Social (CDS), com base em personalidades associadas à democracia cristã.

Porém, fruto de vicissitudes relacionadas com o processo revolucionário decorrente da Revolução de Abril, o CDS não conseguiu na altura congregar uma percentagem significativa do eleitorado, em virtude da necessidade sentida por uma larga maioria da população de uma clara rotura com o modelo de governação e as ideias até aí vigentes. A grande maioria aderiu ao ideário de uma democracia social, assente no funcionamento do mercado, no primado do Estado de direito, pró-ocidental e pró-europeu, repartindo-se pelo PS e pelo PSD.

Fê-lo, porém, predominantemente em função de uma identificação com a figura de Mário Soares e o seu passado de opositor ao regime salazarista, ou tendo em conta a personalidade de Sá Carneiro, defensor de uma visão mais reformista, personalista e modernizadora para o desenvolvimento do país – no fundo, duas visões largamente coincidentes quanto ao desígnio, mas não necessariamente quanto à forma de alcançar os objetivos visados, suas prioridades e correspondentes políticas a implementar. Esta a grande contradição que nos acompanha desde o início da revolução e que nunca foi possível ultrapassar, dadas as personalidades dos dois principais protagonistas em contenda. Acresce que a necessidade de se apresentarem ao eleitorado como partidos bem diferenciados quanto às suas origens, abordagens e políticas para o país – apesar de ambos se reclamarem da social-democracia – não se revelou compatível com a celebração de pactos visando as reformas necessárias a um desenvolvimento sustentável.

A clarificação do sistema partidário surge, assim, como tema central da política em Portugal, particularmente no momento atual, em que a prática política faz com que o centro político não se encontre devidamente representado. Tal resulta basicamente da prevalência da linha mais à esquerda (e populista) no PS, como resultado da existência da geringonça e das exigências que dela decorrem, bem como da inflexão para uma direita mais liberal por parte do PSD que, aproveitando-se das exigências da troika no período do resgate económico, pretendeu ir mais além e pensou que seria com base em privatizações e impondo sacrifícios desproporcionados à classe média (incluindo trabalhadores e reformados) que o país conseguiria libertar-se dos seus problemas e alcançar um crescimento sustentável e a convergência com a Europa.

Que uma larga maioria dos cidadãos não se reveja nos partidos políticos, tal como eles presentemente surgem aos seus olhos, não carece de justificação. É manifesto o descrédito atingido pela prática governativa e os políticos em geral, consequência em larga medida de um regime político e eleitoral assente em oligarquias partidárias que capturaram o poder legislativo e a governação, e cujo móbil prioritário é a manutenção do poder. Mas é também consequência do atual leque partidário não oferecer uma alternativa correspondente aos anseios de uma classe média, em particular do seu segmento mais jovem.

Há necessidade de uma força no centro do leque político, essencialmente reformista, que acredite na economia de mercado e no papel decisivo do setor privado, mas que reconheça igualmente o papel essencial do governo e da governação enquanto incentivador e facilitador da iniciativa privada e regulador das motivações que lhe estão subjacentes. São estas que informam e caracterizam o comportamento humano e só assim será possível combater o populismo e os sistemas autocráticos.

Aguardemos, pois, e façamos votos para que a reconfiguração da liderança no PSD, atualmente em curso, possa dar um contributo significativo no alcançar destas reformas e para a emergência de um partido que tenha por lema a solidariedade e o crescimento como bases para o desenvolvimento – em suma, a social-democracia. Com efeito, ou o PSD se recentra e renova, ou algo de novo terá de surgir para congregar os verdadeiros sociais-democratas do PSD e PS.

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O Orçamento Geral do Estado corporativo

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
Só uma nova lei eleitoral que permita novas lideranças, na linha do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”, poderá avivar a esperança num verdadeiro Orçamento do Estado ao serviço de todos, proposto por um ministro das Finanças que o seja de Portugal, e não das administrações públicas e das corporações instaladas.


O Orçamento Geral do Estado corporativo 
Passadas as eleições, vai começar no parlamento o solene debate do Orçamento do Estado. Aliás, um debate pró-forma, já que, depois de aprovado, sofrerá tantos desvios, transferências e cativações, alterações ad hoc ao sabor dos interesses de ocasião, que a sua execução acabará num retrato em que ninguém reconhecerá o original. O que, aliás, não preocupa ninguém, muito menos a nomenklatura política, que considera a prestação de contas pelo governo, traduzida na apresentação da Conta Geral do Estado no parlamento, como assunto irrelevante, despachado burocraticamente em sumaríssimo debate. As questões do género, essas sim, é que são importantes.

Entretanto, diversas corporações fazem-se ouvir no Ministério das Finanças, e a todas o ministro dando resposta, o Orçamento deixa de ser do Estado para ser o Orçamento do Estado corporativo. De imediato apoiado pelos media, que fomentam à exaustão análises corporativas para todos os gostos: a do funcionário sobre os aumentos salariais, a do sindicalista sobre os seus efeitos nas negociações dos acordos coletivos, a do deputado sobre os fundos afetos ao seu círculo, a do autarca sobre as verbas que não recebe, a do burocrata, pelas magras dotações do seu serviço e pelas regalias que não obteve, a do defensor de mais Estado, pelo sempre reduzido e insuficiente aumento da despesa, e a do artista pelos escassos subsídios para a cultura, artes e cinema. E o investigador discute o “desinvestimento” na investigação, mas não diz uma palavra sobre o seu conteúdo ou sobre o número de patentes que produziu. Aliás, trabalhar para patentes seria degradar a investigação…

Durante dois meses ouviremos políticos, comentadores, grandes economistas e pensadores: uns irão analisar o Orçamento pelos objetivos que prossegue, outros pelos meios que utiliza, uns tantos pela receita, mais outros pela despesa, e muitos pelo défice, esquecendo que este é um simples efeito, e não uma causa.

O comentário refletirá apenas interesses parciais, sejam eles políticos, partidários ou corporativos; e, tomando sempre cada um a parte pelo todo, o OE é bom, sofrível ou mau para o país consoante o seu problema pessoal é resolvido, considerado ou ignorado.

Os debates na rádio e na televisão privilegiarão o espetáculo: convidam-se muitos para que ninguém diga nada, porque o tempo é escasso, mas considera-se que o show resultou. E o serviço público fica tanto mais cumprido quanto se enfatiza que não tributar mais os mais ricos é um escândalo e um desaforo.

E os raros que tentam fazer uma análise compreensiva, séria e global do Orçamento são abafados pelo ruído geral.

Por isso, de tudo se fala menos do essencial: como travar o aumento vertiginoso da dívida pública, apesar da fiscalidade asfixiante, e o nível insuportável da despesa pública que não se traduz em benefício sentido pelo cidadão e pela economia. Despesa estéril, que sustenta tarefas em duplicado, atividades sem objeto conhecido ou útil, serviços em circuito fechado, que têm em meras prestações recíprocas redundantes a sua única razão de existir, e também os pedintes institucionais que, seguindo o aforismo de quem não chora não mama, viram no aconchego do Estado um rendoso modo de vida. São eles que, afinal, moldam o Orçamento do Estado corporativo que dizem ser do Estado de todos nós. E é esse Orçamento corporativo que tanto se discute que acaba por ser o espelho da democracia sem qualidade em que vivemos.

Só uma nova lei eleitoral que permita novas lideranças, na linha do “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”, poderá avivar a esperança num verdadeiro Orçamento do Estado ao serviço de todos, proposto por um ministro das Finanças que o seja de Portugal, e não das administrações públicas e das corporações instaladas.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade


quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Não invistam em habitação!

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
O imposto Mortágua vai precisamente discriminar e penalizar quem invista em habitações para arrendar às famílias portuguesas!


Não invistam em habitação!
Promover o investimento nos setores concorrenciais da economia, baseado nas poupanças de empresas e particulares, é um dos objetivos prioritários do nosso país.
Por isso o ministro da Economia ergueu o Programa Capitalizar, destinado a reforçar o músculo financeiro das empresas, como uma das bandeiras políticas da sua atuação governamental.

Surge assim como um completo absurdo, e uma flagrante contradição com as prioridades da política governamental, a instituição no OE de 2017 do designado adicional do IMI, mais conhecido por “imposto Mortágua”.

Desde logo porque, sendo um imposto sobre o património e independente da receita que possa, ou não, gerar, terá sempre um enquadramento de “confisco” que leva à destruição dos capitais próprios das empresas e dos cidadãos.

Ora, exercer esse confisco seletivamente apenas sobre o património constituído pela habitação dos portugueses vai também contra outro dos objetivos prioritários do governo, que é promover o investimento em habitações para arrendar, em especial em Lisboa e no Porto.

Pois o imposto Mortágua vai precisamente discriminar e penalizar quem invista em habitações para arrendar às famílias portuguesas!

Ou seja, quem invista as suas poupanças para proporcionar um lar e gerar emprego é, afinal, castigado, comparativamente a quem invista noutros setores ou que simplesmente deposite o seu dinheiro no banco, ou compre barras de ouro para ficar à espera que a respetiva cotação suba...

Mas mais: para um governo e para uma maioria parlamentar que fazem grande alarde da sua consciência social, é confrangedor verificar que um imóvel destinado a alugar para habitação é penalizado pelo imposto Mortágua, enquanto outro imóvel destinado a um bar de alterne dele está isento!

E esta constatação deriva diretamente do articulado da lei pois, no segundo caso, esta é considerada como uma atividade comercial e, como tal, não penalizado.

Vejamos mais algumas chocantes incoerências deste imposto:

– Foi definido como um objetivo do atual governo a recapitalização da banca, nomeadamente para poder fazer face aos seus “ativos tóxicos”, constituídos em grande parte por imóveis de habitação.

Assim, o imposto Mortágua cai fatalmente em cima dos bancos, descapitalizando ainda mais os seus balanços.

– Também muitas empresas de construção figuram entre os detentores dos “créditos malparados” concedidos pela banca.

E as empresas de construção têm um vasto património habitacional, pelo que este imposto vai penalizá-las, tornando ainda mais problemático o pagamento das respetivas dívidas à banca.

Sendo o Ministério das Finanças quem promoveu a recapitalização da banca, que na Caixa Geral de Depósitos provocou já um grave aumento da dívida pública, não se compreende como é que esse mesmo ministério, ao criar depois este imposto, vai colocar mais obstáculos a essa recapitalização em que todos fomos obrigados a participar.

Mas a aplicação deste imposto criou ainda outras situações de gritante injustiça.

De facto, para além da questão do património imobiliário detido em conjunto pelos membros de um casal, como tem sido ventilado na imprensa, há também o caso das “heranças indivisas”.

Pois o OE 2017 decidiu penalizar com o imposto Mortágua todas as “heranças indivisas cujo património total destinado à habitação ultrapasse os seiscentos mil euros”.

Quer isto dizer que, se um conjunto de seis herdeiros tiver uma herança constituída por seis andares alugados para habitação no valor de 101 mil euros cada, já paga este imposto.

E isto apesar de cada um destes seis herdeiros ter apenas um património de 101 mil euros, pelo qual também paga ao Estado IMI, taxas de esgoto, de proteção civil e IRS.

Para que tivessem sido isentos desta enormidade fiscal, o OE 2017 exigia que todos os herdeiros tivessem assinado, logo em maio passado, um documento dizendo que queriam ser coletados individualmente, bastando a falta de assinatura de um deles para que todos tivessem de pagar este imposto. E não houve da parte da Autoridade Tributária qualquer preocupação em avisar os contribuintes desta “novidade fiscal”.

Excelente forma de se promover o investimento para habitação, para cumprir os objetivos definidos pelo mesmo governo que também criou o imposto Mortágua!

Estamos, pois, perante um exemplo gritante de contradições estratégicas entre as várias políticas públicas.

Continuando hoje Portugal extremamente endividado, desde logo por parte do Estado, mas também por parte das famílias e das empresas, é necessário promover cada vez mais uma poupança que se converta em investimento produtivo. E isso não pode ser sabotado na prática através de outras medidas, como o imposto Mortágua, tomadas pelo próprio governo.

Pois só assim se pode reduzir progressivamente o endividamento e consolidar uma economia portuguesa na zona euro, sem a sombra de uma nova bancarrota como a de maio de 2011.

Uma democracia de qualidade tem de ter por objetivo que o conjunto das políticas públicas sejam coerentes entre si e transmitam aos agentes económicos uma metodologia eficaz para que a sociedade, no seu todo, seja mais próspera e socialmente mais coesa.

Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

A virtuosa e a malvada. Uma narrativa de factos alternativos.

Ponham-me essa noite eleitoral a bombar!... Olé!

Foi o grande Paulo Portas, o inventor da regra política do «1º, 2º e 3º» que definiu o princípio cardinal (também no sentido do circo) das vitórias eleitorais: as eleições ganham-se nas proclamações de vitória e nos comentários televisivos da noite eleitoral.
Da mesma forma, António Costa, sem qualquer escrúpulo político, decidiu transformar a noite autárquica numa «imensa vitória do partido socialista e numa retumbante derrota da direita».
Às 10 horas da noite, Costa proclamava a imensa vitória socialista e as gigantescas vitórias em Lisboa e no Porto. Ajudou muito a esta «narrativa» que a essa hora, o STAPE estranhamente ainda não tivesse dado resultados fiáveis e que todas as declarações partissem de sondagens marteladas que apenas reflectiam o desejo de quem as encomendou.
A esmagadora maioria dos portugueses deitou-se a pensar que Fernando Medina tinha ganho Lisboa com uma maioria absoluta reforçada e que no Porto, o … seja lá quem for que era candidato socialista, tinha ganho, ou no mínimo… tinha ganho, uma vez que a direita tinha sido retumbantemente derrotada!
Esta sensação percorreu os jornais do dia seguinte em que as luminárias de esquerda aproveitaram para verter o seu verdete: no Público, São José Almeida e David Diniz em editorial escreviam «o PS leva quase tudo: volta a conseguir a maioria absoluta em Lisboa…»; Francisco Loução, mais afoito, como deve, proclamou «o PSD afunda-se e o PS ganha. Em Lisboa e Porto o PSD ronda os 10% enquanto o PS reforça a sua maioria autárquica.»; o inefável Rui Tavares reforça: «Fernando Medina ganhou em Lisboa com um dos melhores resultados de sempre na capital».
O mesmo Tavares, fino e livre pensador, dá o mote da coisa mais à frente: «de passagem, António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins são também vencedores da noite e mesmo mais do que isso: … Boas notícias para a esquerda, más notícias para a direita», mas «o CDS por seu lado vai clamar vitória. Assunção Cristas teve um bom resultado em Lisboa e ultrapassou o PSD. Mas que significa isso para lá da rivalidade fratricida com o PSD? Nada. O CDS pode ter três vereadores … (mas) em freguesias de Lisboa o CDS contará pouco ou nada» e mais: «o PCP pode ultrapassar o PSD em Lisboa»…
Já João Miguel Tavares, pesaroso, lamentava ver «nem nos piores sonhos… a hipótese de Teresa Leal Coelho ficar atrás do Partido Comunista», porque «ver o PSD aterrar abaixo dos 10% em Lisboa e no Porto é inimaginável.»
Tavares tinha razão: era inimaginável e, claro, não aconteceu, a não ser nas declarações do Costa às 10 da noite e nos comentários escritos do dia seguinte.
Diga-se de passagem que nem pelo facto de estarem escritos os respectivos escribas pediram desculpa pelo monte de mentiras e disparates que escreveram. Não! Eles têm sempre razão, afinal, são eles que escrevem nos jornais.
Para tão distintos comentadores, o facto de o PCP ter perdido 10 Câmaras em 34, ou seja, quase um terço, mas de entre as maiores (Beja, Almada…) não conta: Jerónimo tinha de ser nesta guerra justa entre a virtuosa esquerda e a malvada direita, um vencedor.
Medina perdeu a maioria absoluta, 10% dos votos e 3 Vereadores? Ninguém viu, a virtuosa esquerda teve uma vitória retumbante.
No seu conjunto, «a direita» subiu vários pontos percentuais em Lisboa? Passou de 4 para seis Vereadores? Não pode ser. Toda a gente sabe que a malvada teve uma derrota nunca vista.
O facto de no Porto a «malvada» ter tido entre o “independente” Rui Moreira, assessorado por luminárias do CDS e do PSD, e o PSD oficialista, mais de 60% dos votos e a esquerda menos de 35%, quer dizer alguma coisa a estes comentadeiros? Pelos vistos nada, porque a virtuosa teve uma vitória nunca vista e a malvada uma derrota retumbante.
Cá para mim, no Porto, a direita teve tantos votos que deu para o Moreira ter a maioria absoluta (esse sim, cresceu!) e ainda sobrou para o PSD oficial ter tido 13%. É obra. Mas que digo eu? Então a «virtuosa» não teve uma vitória nunca vista?
De Braga ou de Aveiro é melhor nem falar, porque é ponto assente que com as suas 98 Câmaras o PSD passou à irrelevância e à interioridade rural. E claro, em Oeiras, os três heterónimos do PSD tiveram em conjunto mais de 70% dos votos, mas aí não havia maneira de o PSD, “pour l’honneur” não apresentar um candidato oficial.
Tudo dito, o PS ganhou, sim. O PSD perdeu, também. Nem num caso nem no outro foram as vitórias esfuziantes nem a derrota sombria que a noite eleitoral nos garantiu, mas, lá está, o grande Paulo Portas é que tinha razão e os socialistas melhoram a versão da coisa: põem o STAPE a colaborar na mentira oficial.
Este é aliás o modus operandii dos socialistas, bem rodado pelos actuais membros do governo quando colaboravam estreitamente com José Sócrates no saque do País: enxamear as instituições oficiais dos seus oficiosos e garantir que a mentira oficial é corroborada por todos. Quem desalinhar, leva.
É por isso que a compra da casa de Fernando Medina e o concomitante ajuste directo e milhões de euros de obras à Teixeira Duarte foi proclamado um «gato morto» pelos comentadeiros do regime. É por isso que a compra da TVI pela Altice nunca mais é validada pela Autoridade da concorrência; é por isso que a verdade sobre Pedrógão Grande nunca mais sai… Sem que isso incomode, aparentemente os «powers that be» dos media portugueses.

À atenção dos jornalistas sérios: investiguem lá essa coisa estranha de os resultados de Lisboa só terem saído às 4 da manhã…