sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Democracia - Portugal e Angola

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, saído anteontem no jornal i.
Dificilmente se encontra hoje num outro país da Europa e mesmo em muitos outros países de democracia não consolidada, como Angola, um nível de compadrio, de nepotismo e de corrupção tão elevados como em Portugal.
Democracia - Portugal e Angola
A evolução recente da política angolana contém alguns ensinamentos que deveriam interessar a todos os portugueses, na medida em que precisamos tanto quanto os angolanos de uma limpeza dos estragos provocados na economia e na sociedade portuguesa pelo conluio entre a política e os negócios. Porque se é verdade que a corrupção foi, apesar de tudo, mais evidente em Angola do que em Portugal, não é menos verdade que o novo Presidente João Lourenço iniciou um processo de limpeza que nos deve fazer inveja.

Recentemente, o Presidente angolano anunciou numa intervenção pública que o MPLA, como órgão colegial, assume colectivamente a responsabilidade do que se passou e que se deveu à inacção do partido e cujas consequências “está hoje o País a pagar”. Que bom seria que António Costa e os restantes dirigentes do Partido Socialista dissessem o mesmo relativamente à tenebrosa governação do PS durante o consulado de José Sócrates.

Mas João Lourenço acrescentou mais na sua intervenção: “Que haja transparência na adjudicação das grandes empreitadas públicas, barragens hidroeléctricas, portos, aeroportos e que se respeite a necessidade de realização de concursos públicos.” Que bom seria que António Costa dissesse o mesmo e terminasse com a hecatombe dos concursos por ajuste directo, no Governo e nas autarquias, nomeadamente na de Lisboa, que é fruto da inspiração pessoal do Primeiro-Ministro.

Na mesma ocasião, o anterior presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, falando certamente sobre o que conhece bem, disse o seguinte: “a corrupção já tem sido definida como o segundo principal mal que afecta a sociedade depois da guerra, tendo em conta os excessos praticados por agentes públicos e privados, que obtinham de forma ilícita vantagens patrimoniais para si ou para terceiros.” Mais à frente e falando de nepotismo disse: “caracterizado como o favorecimento de parentes ou amigos próximos em processos de promoção profissional ou de nomeação para o exercício de funções.”

Ainda sobre o mesmo tema, soubemos há dias que o Presidente Macron da França publicou um decreto a proibir os ministros e outros governantes de nomearem familiares para cargos públicos. Se aplicada em Portugal, esta lei francesa arriscava-se a demitir metade do Governo português. Ou seja, dificilmente se encontra hoje num outro país da Europa e mesmo em muitos outros países de democracia não consolidada, como Angola, um nível de compadrio, de nepotismo e de corrupção tão elevados como em Portugal. E por mais que os governantes, com o Primeiro-Ministro à frente, se afadiguem a negar essa realidade, usando para isso todos os recursos da sociedade da informação e, em muitos casos, da desinformação, vamos continuar a assistir quase semanalmente a novos escândalos e o conhecimento de novos desastres, com ou sem consequências mortais. Contribui para isso um Estado tentacular, chefias em grande parte de familiares, amigos e afilhados do poder político, um Estado usado ao limite pelos partidos em seu benefício e dando os piores exemplos à sociedade. Recentemente, a Câmara de Lisboa demonstrou de forma simples como se gastam os dinheiros públicos para contentar as oposições, concedendo-lhes todas as mordomias possíveis. A fórmula é tragicamente simples: se não consegues convencê-los, compra-os.

Sabemos todos que, para serem democráticos, modernos e desenvolvidos, os países precisam de instituições fortes e independentes do poder político, como precisam de empresas libertas do Estado, mas responsáveis e respondendo perante os colaboradores, os clientes e a lei. Ora, o que acontece em Portugal na actual conjuntura é o inverso: as instituições são dominadas pela desconfiança, pela burocracia, pela instabilidade e pela má qualidade das leis, além de dependerem do dinheiro distribuído em profusão pelos governos, com critérios de reforço do poder partidário e pessoal e o objectivo de manutenção do poder.

Sobre tudo isto impera uma Assembleia da República cega e surda e que só não é muda porque há que simular o processo democrático. Razões mais do que suficientes para que um grupo de gente de boa vontade e que muito gosta de Portugal continue a lutar neste jornal por uma democracia de qualidade e pela reforma das leis eleitorais.
Nota: encontra-se já à venda o livro “Por um Democracia de Qualidade” que dá a conhecer os textos publicados às quartas feiras neste jornal.
Henrique NETO
Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O inimigo dentro de nós

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i
Não há pior inimigo de uma democracia que se queira de qualidade e qualificada do que a corrupção. A corrupção é inimiga da democracia. Ponto final e bom Natal a todos.


O inimigo dentro de nós

Fez por estes dias 14 anos que em 11 de Dezembro de 2003 me desloquei ao México, à cidade de Mérida, para assinar em nome do Estado Português a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

A Conferência Política de Alto Nível em que a Convenção foi apresentada foi o palco de numerosos discursos inflamados contra a corrupção de altos responsáveis da maioria dos países do mundo. Confesso que me diverti interiormente a escutar príncipes árabes e ditadores africanos a fustigar a praga da corrupção…

No discurso de 3 minutos que me foram dados, tive tempo para dizer que a assinatura da Convenção e a sua subsequente ratificação seria a melhor prenda de Natal que poderíamos dar aos nossos filhos, legando-lhes um mundo menos corrupto.

Mal eu sabia que depois disso veríamos grassar a corrupção mais violenta que nunca no continente africano, na Argentina de Kirchner, na Venezuela de Maduro, no Brasil de Lula, na Rússia de Putin, no Portugal de Sócrates, um pouco por toda a parte e sempre em crescendo.

Apesar de todas as medidas de cooperação internacional, de combate aos paraísos fiscais, de combate ao branqueamento de dinheiro ilícito, de controlo das transferências internacionais, a corrupção tem vindo num crescendo, ao ponto de o The Economist ter feito há 15 dias uma capa sobre a corrupção na África do Sul e a ameaça existencial que ela constitui para a Nação do Arco Íris.

A corrupção é como um lento mas imparável subir da água, que vai tirando espaço à liberdade de actuação, à equidade no funcionamento do mercado, minando a confiança das pessoas nos seus políticos eleitos e nas suas instituições.

Não é um fenómeno repentino, que nasça com uma crise (se bem que elas ajudem), com um regime forte. É uma coisa que se vai entranhando perante a aquiescência, por vezes perplexa, dos cidadãos; e é cumulativa: quanto mais se entranha, mais aceite é. Cedo ou tarde mina os fundamentos das sociedades democráticas, cria as condições para todos os populismos, destrói a reputação das classes políticas, infiltra-se, de cima para baixo em todos os recantos da sociedade.

Portugal, como os seis anos do «consulado» Sócrates comprovaram, não é uma excepção, como não o são os restantes países da União Europeia, uns mais, outros menos, mas a mim o que me preocupa é Portugal.

Espanta-me, confesso, a facilidade com que numerosos membros do Governo de Sócrates, que não viram, ouviram ou souberam de nada, tenham transitado sem soluços nem escândalo para o actual governo de António Costa, ele próprio um ex-ministro da Administração Interna de Sócrates.

Espanta-me que ministros que participaram activamente nas “políticas” do Governo Sócrates e não viram nada, mantenham na opinião geral uma reputação de competência sem referência à sua participação no Governo que dirigiu sem escrúpulos nem hesitações Portugal para a bancarrota e para a maior crise desde o 25 de Abril de 1974.

Espanta-me que o actual Primeiro-ministro se rodeie impunemente de uma «coterie» de amigos do peito e velhos cúmplices e companheiros de armas, sem que isso suscite mais do que um ar de cepticismo nos observadores.

Espanta-me sumamente que perante a tragédia dos incêndios deste verão, o actual Ministro da Administração Interna proclame que tudo fará para combater os incêndios e declare com um ano de antecipação que fará os ajustes directos que for necessário fazer. Ajustes directos porquê?

Os ajustes directos, de experiência consabida, são o meio mais directo para a corrupção no Estado. A razão normal é a urgência e valha a verdade que os «incompetentes» são de uma competência extraordinária a inventar razões insindicáveis para as urgências.

Os partidos políticos que deveriam controlar e vigiar a acção do Governo, parecem ter entre si um pacto de regime: o de suportar e calar a corrupção que veem, porque como dizem os africanos, quando alternam no poder, o entendimento geral é que é «a vez deles de comer»…

Estas generalizações parecem e são duras e muitas vezes injustas, mas a verdade é que neste Natal de 2017 não me consigo impedir de pensar, verificar e aquilatar que em Portugal a corrupção mexe-se e move-se e alcança novos protagonistas, cede a novos interesses instalados, sejam investidores chineses (ver capa do The Economist desta semana e as denúncias muito adequadas do Bloco de Esquerda) sejam as novas empresas do regime que rapidamente ocuparam o vazio deixado pelo defunto Grupo Espírito Santo.

O pior de tudo isto é a impressão deletéria que a sociedade civil colhe, de impunidade de quem manda, de sucesso de quem corrompe, de que as rodas do nosso destino não são movidas por nós, de que somos meros espectadores das causas das consequências que nos acontecem, e de que, tudo visto, mais vale a pena jogar o jogo que ficar de fora.

Temo bem que, se continuar assim, cheguemos ao dia em que, como se diz no Brasil, «para os amigos tudo, para os inimigos justiça lenta e cara».

Não há pior inimigo de uma democracia que se queira de qualidade e qualificada do que a corrupção. A corrupção é inimiga da democracia. Ponto final e Bom Natal a todos.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Estratégia, táctica e controvérsias

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.
O simples facto de o governo PS ser suportado na prática pelo BE e PCP, partidos ideologicamente bem distintos, faz com que esta coligação revista características tipicamente tácticas, dada a impossibilidade estratégica de objectivos comuns.


Estratégia, táctica e controvérsias

A tendência para a controvérsia é seguramente um dos aspectos mais característicos da natureza humana e da vida em sociedade. Unanimidade só por milagre. E, como estes não abundam, a conclusão é óbvia... Isto não significa, porém, que toda a controvérsia possa ser seriamente considerada. As regras do bom senso, da racionalidade e da ética circunscrevem aquela ao domínio da admissibilidade.

A área das ciências sociais é particularmente propícia a controvérsias. Desde logo, porque elas têm como objecto o indivíduo, na multiplicidade das suas relações individuais e colectivas, a que personalidades e vivências distintas conferem sensibilidades, sentimentos e visões não coincidentes. A estas, acrescem subjectividades valorativas, tudo se traduzindo numa diversidade de opiniões, por vezes conflituantes. É este conjunto que torna o quadro analítico e decisional nesta área bem distinto do prevalecente nas ditas ciências exactas.

Estas considerações são particularmente relevantes no contexto da governação e da formulação política e ajudam-nos a clarificar muitas das controvérsias e conflitos que de há muito vimos assistindo na avaliação da situação presentemente vivida em Portugal. Neste contexto, é paradigmática a contradição existente entre os que proclamam o sucesso das actuais políticas, em larga medida com base nos resultados económicos a que vimos assistindo, e os que consideram que estes são fundamentalmente consequência do desempenho económico extremamente favorável verificado a nível global. Em síntese, para uns, a actual retoma do País resulta basicamente de uma situação conjuntural favorável e não de medidas assentes na estratégia reformista de que o país carece e sem as quais o processo de modernização e desenvolvimento não será sustentável. Para outros, nomeadamente afectos ao Governo, trata-se de um conjunto de medidas que estão provando a sua eficácia e reconhecidas externamente como viáveis e susceptíveis mesmo de serem exportadas.
A conveniente clarificação da dita controvérsia requer ter presente os aspectos essenciais do conceito de estratégia. Com efeito, esta não é mais do que um plano de acção para alcançar os objectivos decorrentes do desígnio consensualmente definido, o qual deverá igualmente explicitar a métrica de avaliação dos resultados. A estratégia deve, assim, orientar o processo de decisão, fornecendo os princípios orientadores para a tomada de decisões e a afectação dos recursos que tornam possível alcançar os objectivos, tendo em conta que se trata de uma realidade dinâmica de longo prazo. Ao citar-se a célebre frase de Keynes, de que no longo prazo estaremos todos mortos, é preciso igualmente ter consciência de que é no longo prazo que se consubstancia o futuro... A estratégia não deverá, pois, ser confundida com o desígnio (ou missão) e muito menos com a táctica, isto é, com acções específicas visando a implementação da estratégia definida, ou vista como um somatório de acções conjunturais (ou pontuais) não integradas numa estratégia.
Em conclusão, toda a estratégia implica acção (táctica), mas acções (tácticas) não integradas numa estratégia não permitem alcançar o desígnio; mais facilmente conduzem a resultados contraditórios e divergentes dos objectivos. É à estratégia que compete orientar a utilização dos recursos, no quadro das escolhas políticas definidas; trata-se de uma escolha de meios com vista a alcançar os objectivos politicamente estabelecidos, com vista à concretização do desígnio consensualmente estabelecido. Por sua vez, é à política que compete definir os fins (ou objectivos) com base nos valores ou ideologias defendidos. A estratégia é uma ciência da escolha dos meios mais eficazes para atingir os objectivos, independentemente de qualquer referência a ideologias. Estas informam as escolhas políticas, enquanto doutrina dos fins a alcançar. 
Com base nas considerações anteriores, é fácil concluir que a mencionada controvérsia é basicamente resultante de um conjunto de acções que se revelaram eficazes, assentes na gestão de uma conjuntura internacional favorável, mas de natureza táctica, que o Governo e seus apoiantes pretendem apresentar e ver aceites como uma estratégia alternativa de crescimento viável. Que não se trata de uma verdadeira estratégia é óbvio, por várias ordens de razão, entre as quais:

1. Não visarem as acções um conjunto de objectivos consensualmente definidos e prioritários. Aliás, o simples facto de o governo PS ser suportado na prática pelo BE e PCP, partidos ideologicamente bem distintos, faz com que esta coligação revista características tipicamente tácticas, dada a impossibilidade estratégica de objectivos comuns.

2. Entre os objectivos anunciados não figuram alguns dos essenciais, tais como a reforma do sistema eleitoral, por forma a possibilitar maior representatividade e assegurar que os eleitos se sintam responsáveis perante os eleitores. De igual modo, continua sem se materializar a ambicionada reforma do sistema judicial, tantas vezes anunciada e até já objecto de acordos interpartidários.

3. No campo económico, muitos dos objectivos proclamados são contraditórios ou conflituantes, como sucede com o objectivo de redução da dívida pública e a evolução (presumível) da despesa pública, sem que concomitantemente seja expressa a intenção de proceder a uma urgente reforma fiscal. Sintomático, aliás, desta incongruência é o facto de partidos da “geringonça” continuarem a falar da necessidade de uma restruturação da dívida, sem nos informarem da táctica a utilizar e respectivos custos, incluindo reputacionais.

Em resumo, mais de quatro décadas após a “revolução dos cravos”, é altura de nos libertarmos das controvérsias vigentes e reconhecermos humildemente a realidade dos factos, passando a empenhadamente dedicar todo o nosso esforço na definição da estratégia, visando as reformas que duradouramente determinarão o nosso maior bem-estar colectivo. Pensarmos estar no caminho do paraíso, não ajuda...

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Da palavra dada à verba orçamentada: uma distância cósmica e nada honrada

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.

O Orçamento de 2018 é um Orçamento mentiroso e sem qualidade, próprio de uma democracia sem qualidade e de um governo sem qualidade.


Da palavra dada à verba orçamentada: uma distância cósmica e nada honrada

O debate do Orçamento para 2018 confirmou a minha opinião inicial de que se tratava de um Orçamento sem qualidade, um mero exercício de powerpoint em que tudo é milimetricamente ajustado para servir exclusivamente os interesses corporativos que sustentam a geringonça, mas promovido como imagem apelativa, todavia fictícia, de um Orçamento ao serviço do país.

Pior ainda, aconteceu que grandes bandeiras e promessas do governo consubstanciadas no estribilho da “palavra dada, palavra honrada” não tiveram acolhimento nas verbas orçamentais. Ou o governo não honrou a sua palavra no Orçamento ou foi o Orçamento que se rebelou contra o criador e desonrou a palavra do governo.

Dada e mil vezes repetida foi a promessa da reposição de rendimentos. Todavia, é o próprio quadro-síntese das receitas e despesas da administração pública do relatório do OE que desmente a promessa, ao explicitar um aumento da receita do Estado, em termos absolutos e em relação ao PIB. Se a receita do Estado vem, ou veio, da economia, das empresas e das famílias, e se o Estado arrecada uma parcela maior, são as empresas e famílias que a suportam. E, se os portugueses suportam e pagam uma parcela maior do PIB e ficam com uma parcela menor, o Estado não repõe rendimentos, antes recolhe uma parcela adicional através, nomeadamente, da anestesiante tributação indireta.

Assim, das duas, uma: ou o governo não honrou a sua palavra no Orçamento ou foi o Orçamento que imediatamente se rebelou e desonrou a palavra do governo.

Dada e repetida foi a garantia do rigor dos valores orçamentados que suportam os gastos de cada rubrica da despesa.

Todavia, e logo num ano de todos os desbloqueios, de promoções de funcionários, progressões automáticas, aumentos salariais, e também de admissão de professores, de precários sem concurso, bolseiros, estagiários, certamente em condições diferentes das que usufruíam, o OE prevê para as despesas de pessoal um aumento de apenas 71 milhões de euros.

Assim, das duas, uma: ou é o governo que não honra a sua palavra no Orçamento, e serão os cortes orçamentais, agora chamados cativações, no investimento e em rubricas orçamentais ad hoc, que permitirão a cobertura da rubrica, ou é o Orçamento que toma vida própria e desonra a palavra do governo.

Palavra dada e repetida foi ainda que a diminuição do défice se deveria a um controlo da despesa, já que a receita sofreu pela dita devolução de rendimentos aos cidadãos. Mas é o aumento da despesa de 2,5 mil milhões de euros que dá a grande contribuição para o défice de 2 mil milhões de euros, pois este seria o dobro caso a receita fiscal e parafiscal não aumentasse nessa mesma ordem de grandeza.

E também aqui, das duas, uma: ou o governo não honra a sua palavra no Orçamento ou é já o Orçamento que se rebelou e desonra a palavra do governo.

Palavra dada e repetida foi que a dívida irá diminuir em 2018. Mas o quadro das receitas e despesas também mostra que as necessidades líquidas de financiamento atingem um valor superior a 2 mil milhões de euros (e a baixa dos juros, da ordem dos 500 milhões de euros, foi de imediato aproveitada para financiar despesas correntes).

Não sendo possível conciliar reembolsos com défices orçamentais, também aqui, das duas, uma: ou o governo não honra a sua palavra no Orçamento ou é o Orçamento que tomou vida própria e desonra a palavra do governo.

E nem vale recorrer ao sofisma da evolução em termos de PIB. Com o fim dos apoios do BCE e a alta certa das taxas de juro, a persistência de uma dívida elevada gerará novas crises a agravarem as do passado. As reformas estão por fazer (e as feitas foram revertidas) e muitos dos custos permanentes parcialmente considerados em 2018 far-se-ão sentir em pleno nos anos posteriores.

Enfim, um Orçamento mentiroso e sem qualidade, próprio de uma democracia sem qualidade e de um governo sem qualidade, em que palavra dada nada tem a ver com a verba orçamentada e esta pode ser tudo menos palavra honrada.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A hora de Centeno



A escolha para liderar o Eurogrupo é sem dúvida um grande êxito para Mário Centeno e uma fonte de regozijo para o governo onde é o ministro das Finanças. É também uma honra para Portugal. E uma oportunidade.

Por mim, estou contente. Sem qualquer espécie de reserva. Contente, ponto final.

Limitei-me a comentar, logo que foi anunciada a eleição do novo Presidente do Eurogrupo: “Uma boa notícia, a consagração de um bom trabalho, a responsabilidade de fazer melhor.” Isso mesmo repetiria agora. E repito.

Ontem, na rádio, ouvi Francisco Louçã prevenir contra a explosão de “centenismo” a que iria assistir-se, assestando contra a direita os seus tiros e procurando contrastar a política de Centeno com as políticas defendidas por PSD e CDS.

A prevenção de Louçã contra os “centenistas” da 25ª hora é, sem dúvida, avisada. Mas a prevenção aplica-se a si próprio e a outros das suas bandas. Ao apontar o dedo em riste, Francisco Louçã, ao espelho, está a apontar o dedo ao seu próprio nariz.

Centeno ganhou, porque, com indiscutível mérito seu e da sua equipa (bem como do primeiro-ministro), se tornou o “Ronaldo do Ecofin” (o conselho de ministros da Economia e Finanças da UE), nas palavras do diabolizado Wolfgang Schäuble.

Centeno ganhou, porque teve o apoio declarado de boa parte do PPE europeu, mostrando bem que a direita europeia não se rege pelo sectarismo dos companheiros e parceiros de Louçã.

Não vou obviamente dizer que Centeno aplicou a mesma política que PSD/CDS executariam, o que seria injusto e disparatado. Mas a política que Centeno aplicou só foi possível, porque PSD/CDS enfrentaram com coragem os anos da brasa da intervenção directa da “troika” e abriram espaço e tempo a novas escolhas e possibilidades de alternativa.

Hoje, com PSD/CDS, não teríamos políticas macroeconómicas muito diferentes, mas teríamos progressos sociais provavelmente mais lentos. O talento de Centeno, como quem faz um “patch work” muito cuidadoso e paciente, tem estado em ter mantido (e porventura melhorado) a trajectória de Portugal nos indicadores fundamentais para os equilíbrios do país e a nossa credibilidade nos mercados, nos parceiros e nas instituições, ao mesmo tempo que acelerou a chamada “reposição de rendimentos”, acorrendo à urgência de bem-estar de muitas famílias. “Chapeau!”

Mas onde a diferença de Centeno é fundamental é mesmo com os seus parceiros de geringonça. Se Centeno tivesse seguido a linha de Varoufakis, o grande herói de Louçã, Marisa Matias e Catarina Martins, estaríamos todos liquidados. Estaria Centeno destruído e nós também, debaixo da pata de um segundo resgate ou equivalente. Mesmo se o actual governo tivesse seguido uma mais moderada linha Tsipras 2, que já pediu desculpa pelo Tsipras 1 e se demarcou de Varoufakis, Centeno não teria sido consagrado como Presidente do Eurogrupo, mas não passaria de mais um pedinte humilhado por si mesmo e, por estar falido, incapaz de quaisquer escolhas.

Os derrotados da eleição de Centeno são os adversários consagrados do euro. Os vencidos pela eleição de Centeno são aqueles que sempre têm advogado a saída de Portugal da zona euro. Quem são, quem são? PEV, BE e PCP. Nem mais.

E quem foi o primeiro oráculo da eleição de Centeno? Wolfgang Schäuble, ele mesmo. E esta, hein?...

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

País em prisão domiciliária

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, hoje saído no jornal i.

Sem grandes soluções à vista, vemos os ex-amigos e ex-companheiros de governo do ex-primeiro-ministro José Sócrates a governarem o país e a capital como se absolutamente nada os ligasse a essa desastrosa fase da democracia portuguesa.



País em prisão domiciliária
Portugal tem do atual regime aproximadamente o mesmo tempo de duração do regime anterior. Em tese, o regime já devia ter caído. Contudo, o país está, faz décadas, refém de um sistema partidário fechado em si próprio, tendo acabado por se habituar a viver assim. À imagem da síndroma de Estocolmo, passou de refém a detido em prisão domiciliária.
Sem grandes soluções à vista, vemos os ex-amigos e ex-companheiros de governo do ex-primeiro-ministro José Sócrates a governarem o país e a capital como se absolutamente nada os ligasse a essa desastrosa fase da democracia portuguesa. É notável a capacidade de resetting e de autoperdão da esquerda em Portugal. Não obstante, este tem sido um dos problemas do regime transversal ao conjunto das forças políticas do bloco central: a incrível capacidade de reciclagem dos resíduos políticos.
O país carece de reformas e mudanças profundas e, para isso, é importante que o PSD acorde do estado de apatia em que se encontra. O país precisa que o PSD conduza uma oposição com projeto reformador credível, com ideias claras, contemporâneas e ambiciosas para Portugal; para Lisboa, para o Porto, para o interior, para o litoral; para o papel de Portugal na Europa, para o combate à desertificação, para a reforma do Estado, para a reforma da justiça, para a educação; para a atração de empresas internacionais, para o crescimento económico, para a segurança, para a regionalização e, por fim, para o sistema político. Sem a reforma do sistema político não haverá democracia, nem o país se libertará da detenção de que foi alvo.
Portugal é um país detido por partidos e políticos que, por sua vez, são detidos por grupos de interesses. Os vários casos de justiça mostram bem a permissividade do sistema, e por mais inusitado que pareça estamos hoje, algumas vezes, mais próximos dos receios do Bloco de Esquerda que das práticas do governo. O tema das rendas das empresas de energia é uma clara demonstração.
É necessário que o PSD abandone o exercício da oposição focado em habilidades e no quotidiano, e que pense o país, a Europa e o mundo; pense Lisboa, pense o Porto, pense Setúbal, Faro, Braga e Évora; pense a modernização da administração pública, a agilidade e clareza na justiça, a ética na governação, a transparência na aplicação de fundos, a redução da burocracia, o equilíbrio das contas públicas, o desenvolvimento empresarial e a internacionalização do país. A realidade mostra, contudo, que o PSD insiste em não se atualizar e, infelizmente, não se apresenta como força galvanizadora de uma esperança fundamentada numa visão estratégica.
Enquanto esta cultura cinzenta de antiguidade apática persistir está facilitada a vida de quem faz da política um exercício essencialmente mediático. É por isso que parece que o governo resolve os problemas estruturais do país e que Lisboa não tem lixo e buracos nas ruas, que os autocarros da Carris não largam um fumo negro insuportável e que Fernando Medina não é um fraco presidente de câmara, produto de uma mediatização idêntica à de José Sócrates e António Costa.
O diagnóstico está feito, publicado e conhecido, não oferece grandes dúvidas. Consequentemente, aquilo de que o país necessita é de uma visão clara que ajude a resolver as enfermidades crónicas. Assim sendo, e como anunciado em artigos anteriores, apresento hoje uma pequena lista de áreas de intervenção que me parecem adequadas ao contributo da modernização e desenvolvimento do país.
No sistema político: Introdução de círculos uninominais para a eleição dos deputados à AR, abrindo a possibilidade de candidaturas independentes; redução do número de câmaras municipais para 180; transformação das juventudes partidárias em grupos de voluntariado e apoio social; introdução, como órgão de coordenação de política nacional, do encontro entre o governo e os presidentes de câmara. Estas mudanças, aparentemente pequenas, constituem em si um avanço na cultura democrática que permitirá ao país arejar, libertando-se do estado de detenção que os diretórios partidários impuseram. Devolverá a decisão e o escrutínio quanto à eleição e atuação dos deputados aos eleitores, retirando desta forma, e em definitivo, a autoridade ditatorial que os partidos possuem relativamente aos deputados eleitos.
Na posição de Portugal na Europa: Garantir que, dentro das forças armadas comuns, Portugal, por ser detentor da maior zona económica exclusiva marítima (ZEE), terá um papel central no que à armada europeia diz respeito. Esse objetivo pelo qual temos de bater-nos contribui para o desenvolvimento de atividades económicas várias, investigação e ensino, emprego e reforço da influência diplomática do país. Além disso, deixa claro que não pretendemos prescindir da soberania no que respeita à autoridade sobre o nosso maior ativo em termos territoriais. A ZEE tem potencial para constituir em si um desígnio de desenvolvimento que arraste centros de investigação e universidades, empreendedores e empresas, setor público e governo.
Há um enorme potencial desaproveitado em Portugal e nos portugueses. A ausência de desígnios estruturais, para além de desmotivadora, impede o crescimento estrategicamente sustentado da economia e da influência de Portugal na Europa e no mundo.
Não é excessivo sublinhar a ideia de que o desenvolvimento do país passa pela evolução qualitativa da democracia que apenas uma democracia de qualidade, real e sem disfarces, poderá resolver.

Eduardo BAPTISTA CORREIA
Activista político, Gestor e Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Reforma do sistema eleitoral – a génese indispensável para a melhoria da nossa democracia

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Fernando Teixeira Mendes, saído hoje no jornal i.

Uma reforma destas só não é feita porque a classe política portuguesa se protege, dentro do seu castelo, para não ser atacada e não ter concorrência.


Reforma do sistema eleitoral – a génese indispensável para a melhoria da nossa democracia

A preocupante degradação da democracia em Portugal está a afetar gravemente a vida dos cidadãos.

O sistema eleitoral em vigor permite que os sete líderes das bancadas parlamentares decidam os assuntos que os deputados vão comunicar no hemiciclo. Esta situação não pode continuar, porque assuntos de grande interesse para a sociedade civil não são aí debatidos.

Porque é que para a nossa Assembleia da República não se podem apresentar, por sua iniciativa e em círculos uninominais, candidatos independentes das estruturas partidárias?

Porque é que a revisão da Constituição de 1998 (há aproximadamente 20 anos!), permitindo círculos uninominais, não foi implementada seguidamente pelos partidos políticos? Foi um teatro o que andaram a fazer durante a revisão da Constituição?

Seria de grande interesse para o país que a Assembleia da República tivesse um grupo de deputados que debatesse e tomasse posição sobre, por exemplo, as perigosíssimas fragilidades atuais da nossa administração pública.

O que em 2017 se passou com os incêndios no interior do país foi vergonhoso, absolutamente inaceitável e só possível pelo facto de a frágil administração pública não permitir que as florestas e os incêndios sejam tratados e assumidos de forma correta e eficaz. Estamos muito pior do que há 50 anos.

Volto também a escrever sobre uma fragilidade que está a ser criada numa área que conheço bem: a da inspeção e certificação das instalações elétricas, em que o decreto-lei 96/2017, publicado em 10 de agosto passado, isenta de inspeções as instalações mais pequenas e passa as atribuições da CERTIEL – Associação Certificadora de Instalações Elétricas para a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) – isto depois de serem publicadas três portarias ao longo de dois anos anunciando um concurso público para escolha de uma entidade certificadora, o que nunca veio a verificar-se!

Reconheço as enormes capacidades técnicas e humanas dos poucos recursos da DGEG, mas sei que esta está sem capacidade para absorver a carga de trabalho que pretendem que assuma já a partir do início de janeiro de 2018.

As consequências da aplicação do decreto-lei 96/2017 vão ser graves para as populações.

Pergunto: porque é que, em termos de segurança de instalações elétricas, aqueles que têm casas pequenas não são tratados da mesma maneira que aqueles que têm casas grandes? Não se trata de uma discriminação inaceitável para os de menos posses? Todos lidam com a eletricidade, que pode produzir incêndios, e usam a mesma tensão mortal de 230 V, com potências de curto-circuito também de igual valor para todos.

Será mesmo lançado um concurso para auditorias técnicas por amostragem a serem efetuadas a instalações elétricas já em uso, tal como define o despacho 7394/2017? E se houver lugar a alterações obrigando a obras em casas habitadas ou em estabelecimentos comerciais em funcionamento?

Que se cuidem os partidos que têm ambições governativas porque, se continuarmos a ter alternância democrática em Portugal, o governo afeto ao PS faz a lei e, depois, os outros que estiverem no governo à época sofrerão as consequências!

Se os deputados da Assembleia da República sentissem a sua eleição verdadeiramente ligada aos cidadãos que os elegem, debateriam estes e outros assuntos com uma outra profundidade.

Para a melhoria da qualidade da nossa democracia e do nível da classe política, defendemos na APDQ – Associação Por Uma Democracia de Qualidade que cada eleitor possa exercer o duplo voto no seu boletim, assinalando: a força política (partido ou coligação) que prefere no respetivo círculo territorial intermédio e o deputado que escolhe no respetivo círculo uninominal de base.

Tal como em importantes países, como a Alemanha, o sistema é constituído por forma a que se ajuste no seu todo o peso das várias forças partidárias.

Uma reforma destas só não é feita porque a classe política portuguesa se protege, dentro do seu castelo, para não ser atacada e não ter concorrência. Conclusão simples: terá de ser a sociedade civil a iniciar o processo, dando indicações claras de que só apoiará partidos que defendam este tipo de reforma. É a sociedade civil que tem as ferramentas para a atuação na sua posse.

Não posso deixar de fazer aqui um grande elogio ao texto bem pragmático de José Ribeiro e Castro, recentemente escrito ao abrigo destes artigos:
“(...) Basta um só deputado com voz livre para a diferença logo se sentir. E, se todos forem de voz livre, não presos e vergados a tribos, não dependentes do chefe, mas pertencentes aos eleitores, o caso muda por completo de figura. A democracia vive porque a cidadania se afirma. Se a reforma eleitoral de 1998 tivesse acontecido, a corrupção teria chegado onde chegou? Não. Os bancos ter-se-iam degradado como aconteceu? Não. As negociatas teriam o terreno livre de escândalo que vimos? Não. A má gestão teria campeado? Não. A desertificação do país teria progredido como está? Não. Após os incêndios de 2003 e 2005, o país teria crescido na extrema vulnerabilidade ao inferno de 2017? É claro que não. Então estamos à espera de quê? Reforma política urgente, pois claro!”
Esta é uma reflexão cheia de propriedade e de enorme atualidade.

Na próxima segunda-feira 27 de novembro, às 18h30, na Livraria Buchholz, Rua Duque de Palmela, 4, em Lisboa, vamos lançar o livro “Reforma Política – Urgente”. Não deixe de comparecer!


Fernando TEIXEIRA MENDES
Empresário e gestor de empresas, Engenheiro
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Reforma política: já vão perdidos 20 anos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
É por isto que a reforma política é urgente: ao fim de 20 anos, a revisão da Constituição continua por cumprir. Os problemas mantêm-se; e, a cada ciclo, agravam-se.


Reforma política: já vão perdidos 20 anos
No final deste mês de novembro é apresentado, em Lisboa, o livro “Reforma Política Urgente”, uma edição da Sopa de Letras, por iniciativa da APDQ – Associação Por uma Democracia de Qualidade, de que sou presidente. O livro compila quase todos os artigos publicados semanalmente, há três anos, neste jornal, à quarta-feira, por um punhado dos 50 subscritores do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade (2014): António Pinho Cardão, Clemente Pedro Nunes, Fernando Teixeira Mendes, Henrique Neto, João Luís Mota Campos, José António Girão, Luís Campos e Cunha, Luís Mira Amaral e eu próprio. O manifesto foca-se na reforma política, reclamando medidas de mais verdade, representatividade e transparência no sistema eleitoral e no financiamento partidário. A associação constituiu-se para dar continuidade à expressão pública das ideias do manifesto e para as aprofundar em diálogo com a sociedade civil. O livro recolhe textos que abordam o tema sob ângulos diversos, corporizando o essencial da nossa luta cívica destes últimos três anos.

Em título, o livro toma logo posição pela urgência da reforma política. Mas esta urgência não decorre de nada de novo que tenha acontecido agora e a provocasse. Não, a urgência resulta de a reforma ser esperada há muito e, preguiçosamente, continuar por fazer.

É espantoso como a teia e os enredos montados pelos diretórios partidários e pelo núcleo duro das classes dirigentes têm conseguido fintar e bloquear, 20 anos a fio, as reformas que se impõem quanto ao modelo das eleições para a Assembleia da República, mantendo tudo na mesma e privando os eleitores da palavra decisiva.

Há 20 anos saiu a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, com a quarta revisão constitucional. A Constituição passou a apontar para um sistema eleitoral de representação proporcional personalizada, que reforça substancialmente o peso dos eleitores na escolha dos deputados. O texto do artigo 149.º da Constituição, embora não o imponha, aponta claramente para um sistema misto, em coexistência de círculos uninominais e plurinominais, em moldes complementares e protegendo sempre a proporcionalidade da representação parlamentar global. A Alemanha tem um sistema deste tipo, que tem prestado excelentes provas.

O que significa isto? Significa que os problemas e vícios de que mais nos queixamos – falta de representatividade dos deputados em geral, poder centralizado nos chefes e diretórios, fraca colegialidade, baixa institucionalidade, escasso poder de escolha pelos eleitores, fácil captura dos centros de decisão, descrédito dos partidos, descrença na democracia – eram problemas que pesavam já fortemente no debate político dos anos 1990. Por isso se fez a revisão constitucional neste domínio, com a profundidade do artigo 149.º. Seria impossível conseguir maioria de 2/3 para desenhar o novo caminho se a questão não estivesse já bastante madura.

A revisão da Constituição foi aprovada a 3 de setembro de 1997. Logo a seguir, o governo da altura aprovou, a 11 de setembro, uma resolução do conselho de ministros a definir o calendário e a metodologia de elaboração de uma proposta de nova Lei Eleitoral para a Assembleia da República, anunciada para março de 1998. A preparação dessa proposta foi muito participada e aberta: houve intervenção dos organismos técnico- -eleitorais do Estado; houve estudos científicos de reputadas entidades universitárias e prestigiados especialistas; houve um primeiro anteprojeto submetido a debate e escrutínio público; houve exame por parte dos partidos políticos.

Em 26 de março, deu entrada no parlamento a proposta de lei n.º 169/vii, estruturando o novo sistema de representação proporcional personalizada, compreendendo 103 círculos uninominais num total de 230 deputados. Seria uma revolução democrática no poder de escolha dos eleitores. Antes, a 16 de março, já dera entrada o projeto de lei n.º 509/vii do PSD, propondo outro quadro de sistema misto, contendo 85 círculos uninominais num total de referência de 184 deputados. E, a 14 de abril, numa linha conservadora, entrou o projeto de lei n.º 516/vii do PCP, propondo apenas ajustes no sistema vigente, que é ainda o atual.

O processo legislativo prometia mais do que deu. Prometia alguma coisa – deu em nada. Prometia concretizar a revisão constitucional – apunhalou-a e enterrou-a. No dia 23 de abril de 1998, naquela que é talvez a mais funesta sessão plenária parlamentar das últimas décadas, a Assembleia da República abortou a reforma política. Os deputados tiveram nos pés uma reforma estratégica fundamental para a democracia e para Portugal – chutaram-na para as bancadas. O CDS assobiou para o lado. O PCP fincou-se na sua. O PSD empunhou o florete da redução, à cabeça, do número de deputados de 230 para 184, esgrimindo uma linha que tem sido, sempre, o veneno tóxico de qualquer reforma eleitoral. O PSD e o PS travaram-se de razões a favor e contra o veneno. PCP e CDS também discordavam do PSD mas, interiormente, regozijavam-se pelo seu efeito sabotador. E, apesar de o governo haver apelado a que passassem na generalidade todos os textos, guardando a fase da especialidade para afinar pormenores e aplanar diferenças, a intoxicação crescente infetou de tal modo o debate que, no fim da sessão, os votos cruzados acabaram a chumbar todos os textos. Morreu. Até hoje…

Na legislatura de 2002/05 criou-se na Assembleia da República uma Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político. Não passou de bailarico. Pomposo, mas só bailarico. Houve contributos relevantes, audições valiosas e qualificadas, abusou-se da boa-fé das pessoas, apresentaram-se boas ideias e propostas. Mas concretizações? Nem uma só para amostra. Foi a forma de os diretórios nos entreterem e arrastarem o tema: faz que anda, mas não anda.

É por isto que a reforma política é urgente: ao fim de 20 anos, a revisão da Constituição continua por cumprir. Os problemas mantêm-se; e, a cada ciclo, agravam-se. O descrédito da política é enorme, gigantesca a descrença no sistema. O sistema sofre de osteoporose em grau avançado.

Basta um só deputado com voz livre para a diferença logo se sentir. E, se todos forem de voz livre, não presos e vergados a tribos, não dependentes do chefe, mas pertencentes aos eleitores, o caso muda por completo de figura. A democracia vive porque a cidadania se afirma. Se a reforma eleitoral de 1998 tivesse acontecido, a corrupção teria chegado onde chegou? Não. Os bancos ter-se-iam degradado como aconteceu? Não. As negociatas teriam o terreno livre de escândalo que vimos? Não. A má gestão teria campeado? Não. A crise do défice e da dívida teria rebentado como foi? Não. A troika teria sido necessária? Não. A desertificação do país teria progredido como está? Não. Após os incêndios de 2003 e 2005, o país teria crescido na extrema vulnerabilidade ao inferno de 2017? É claro que não.

Então estamos à espera de quê? Reforma política urgente, pois claro!

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A destruição de Portugal

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
Há que garantir que o repetido colapso do Estado português, nesses dias fatídicos de 17 de junho e 15 de outubro de 2017, não voltará nunca a repetir-se.

Pico da Melriça

A destruição de Portugal
Há que garantir que o repetido colapso do Estado português, nesses dias fatídicos de 17 de junho e 15 de outubro de 2017, não voltará nunca a repetir-se.
Do alto do pico da Melriça, centro geográfico de Portugal continental, no concelho de Vila de Rei, o cenário é vasto e grandioso: do castelo de Abrantes, a sul, à serra de Aire, a oeste, à serra da Estrela, a nodeste, e à Lousã, a norte, é a imagem deslumbrante do “Portugal telúrico” de Miguel Torga, em que se divisa ainda o castelo templário de Tomar de onde, há quase 900 anos, se organizou o povoamento que garantiu a existência de Portugal.

Mas, hoje, dali também se contempla a terrível destruição humana e material provocada pelo colapso do Estado português neste verão de 2017.

Custa a acreditar, mas no meio daqueles montes e vales estão, em Pedrógão Grande e em Castanheira de Pera, por exemplo, as casas e as estradas onde mais de 110 portugueses morreram este ano queimados pelo fogo, em devastações que nunca deviam ter acontecido. E esta tragédia arrisca-se a provocar o completo despovoamento daquelas terras “mágicas e rudes”, destruindo a obra iniciada pela aliança entre D. Afonso Henriques e os templários.

Agora, o que fazer para salvar estas terras no coração de Portugal? Em primeiro lugar, há que garantir que o repetido colapso do Estado português, nesses dias fatídicos de 17 de junho e 15 de outubro de 2017, não voltará nunca a repetir-se. Pra isso, proponho duas medidas prioritárias:

– Que o crime de fogo posto florestal seja imediatamente equiparado ao crime de terrorismo, de forma a que a respetiva moldura penal se torne mais severa e, sobretudo, para que seja dada prioridade máxima à investigação deste tipo de crimes;

– Que o combate aos fogos florestais seja comandado por profissionais especializados e que nunca mais se assista a chefias impreparadas da Autoridade Nacional da Proteção Civil a demonstrarem total incompetência técnica no combate aos fogos. Neste sentido, o exemplo espanhol duma divisão militar tecnicamente preparada para fazer face aos fogos florestais parece ser excelente.

Mas, depois, há que assegurar que haja atividades económicas geradoras de empregos que garantam a sobrevivência demográfica deste território. E, aqui, o país está face a uma emergência nacional em que, para se conseguir a sustentabilidade económica, terá de se prever uma discriminação positiva para todas as atividades económicas nos concelhos em estado de emergência – incluindo todas as atividades agrícolas, pecuárias e florestais que são a base da ocupação do território.

Numa lógica de sustentabilidade territorial, deve começar-se por uma medida fácil de aplicar em todos os concelhos declarados em estado de emergência:

– Para promover o emparcelamento, todas as escrituras de aquisição de terrenos rurais, até parcelas consolidadas de 50 hectares, devem ter nos próximos cinco anos isenção de IMT e de todos os impostos e taxas administrativas atualmente aplicáveis.

Mas outras medidas de promoção do emprego têm de ser tomadas nestes concelhos:

– Redução para 5% da TSU a cargo dos trabalhadores em todos os novos contratos de trabalho celebrados até 2022;

– Dado que um dos maiores problemas humanos e sociais destes territórios é a idade avançada de muitos pequenos produtores agrícolas e pecuários dos minifúndios, considera-se indispensável conceder-lhes um regime fiscal simplificado, a exemplo do que já acontece noutras regiões da Europa, para que apenas tenham de declarar às empresas a que vendem os seus produtos o seu número fiscal, estando automaticamente isentos de IRS se o total anual das vendas dos seus produtos, acrescido de eventuais reformas e pensões, não for superior ao limite da isenção do IRS;

– Isenção total do IRC em 2018 para todas as PME instaladas exclusivamente nestes concelhos;

– Isenção do IVA na venda de lenha, biomassa, pellets e brickets comercializados nestes concelhos, facilitando assim o escoamento dos muitos milhares de toneladas de material florestal que ficaram espalhados por todo este território;

– Dar uma majoração acrescida a cada MWh de eletricidade produzida nas centrais térmicas a biomassa instaladas nestes concelhos, para que se viabilize economicamente durante todo o ano a queima segura de resíduos florestais e agrícolas.

Ao ler as deliberações do último Conselho de Ministros dedicado aos fogos florestais deste último Verão, verifica-se que estas medidas não estão lá contempladas – o que é preocupante, porque mais importante do que dar dinheiro para reconstruir casas é fazer com que os agentes económicos se sintam motivados para trabalhar e investir nestes concelhos numa lógica de médio e longo prazo, em fileiras económicas que acrescentem valor à economia nacional.

O povoamento do território tem de ter uma base de produtos transacionáveis assente na agricultura, na pecuária e na floresta. A partir daqui é que os investimentos no turismo rural podem fazer sentido. O turismo deve ser protegido como uma atividade económica relevante nestes concelhos, mas, com as tragédias deste ano, “ninguém vai fazer turismo no Verão para territórios despovoados onde se pode morrer queimado”.

Este conjunto de medidas urgentes para salvaguarda da sobrevivência de 40 mil quilómetros quadrados de território nacional deve ser uma prioridade duma democracia de qualidade.

Oxalá os nossos decisores políticos assim o entendam, para que não se concretize a destruição de Portugal.


Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Medidas avulsas e oportunidades perdidas

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, hoje saído no jornal i.
O mais grave problema político do nosso tempo em Portugal, nos fogos como em tudo o resto, é não haver uma estratégia coerente de médio e de longo prazo.


Medidas avulsas e oportunidades perdidas
A tragédia dos fogos deste ano em Portugal, que conduziram à morte de 106 pessoas e destruíram a vida de famílias e a economia de muitos concelhos do país, teve, e vai ter no futuro, consequências políticas, já que existe um consenso nacional de que o governo não esteve à altura das circunstâncias, tendo mesmo, depois de Pedrógão Grande, procurado iludir as causas dos incêndios e as fragilidades havidas no seu combate, em vez de se empenhar de imediato numa ação corajosa para enfrentar as graves lacunas existentes, nomeadamente humanas.

Em vez disso, o governo e a Assembleia da República preferiram recorrer a mais um relatório, cujo objetivo inicial seria apurar responsabilidades, mas que se transformou rapidamente, por opção do governo, numa forma de adiar o que haveria a fazer no curto prazo, com o trágico resultado que conhecemos. Foi um erro político óbvio, com a agravante de que, agora, o mesmo relatório foi adotado como modelo para o futuro que envolve não apenas decisões imediatas e urgentes que devem ser tomadas, mas também outras que deveriam ser mais bem pensadas e debatidas, a fim de ultrapassarem a mera questão dos fogos, para se enquadrarem numa estratégia nacional sustentável sobre o modelo económico e qual a participação nesse modelo da agricultura e da floresta – avaliando em paralelo o modelo de floresta e de agricultura que desejamos – e os seus efeitos no território, nomeadamente no desejável desenvolvimento económico e social do interior do país.

Recordo, como exemplo, que após o terramoto de Lisboa, depois de enterrar os mortos e de cuidar dos vivos, o marquês de Pombal chamou a si os melhores especialistas à época para reconstruir Lisboa, fazendo dela uma nova cidade com vista às necessidades futuras, e não uma cidade igual à que existia antes. Ou seja, o ministro de D. José tinha, como sabemos, uma estratégia de longo prazo para Portugal na qual a reconstrução de Lisboa era apenas uma parte, ainda que relevante. Ora, o mais grave problema político do nosso tempo em Portugal, nos fogos como em tudo o resto, é não haver uma estratégia coerente de médio e de longo prazo, ou não se saber qual o papel de Portugal no mundo global, de forma a potenciar o nosso de-senvolvimento. A questão com que nos confrontamos é, pois, definir qual o modelo económico, social e político que desejamos, e que esteja ao nosso alcance, para melhorar a vida dos portugueses. 
Questão cuja resposta, nas atuais circunstâncias, governados por uma maioria parlamentar baseada em projetos políticos inconciliáveis, não parece, obviamente, possível. Ou seja, tudo o que fazemos tem como destino o curto prazo e mesmo esse vai mudando de acordo com um sistema de forças contraditório, imprevisível e incontrolável. Sem estadistas e sem um consenso político de longo prazo, o país tornou-se um vazio estratégico que vive de iniciativas avulsas, mal pensadas e, frequentemente, contraditórias.

Um exemplo: o governo assumiu agora a participação das Forças Armadas no combate aos fogos, medida que defendi numa comunicação apresentada a um congresso realizado há já alguns anos sobre defesa e segurança, a que chamei “Forças Armadas de um Novo Modelo”. Não se tratava de uma medida avulsa, mas de uma estratégia global que tentava prever o que poderiam ser as futuras Forças Armadas da União Europeia e qual o modelo mais favorável a Portugal, no contexto dos nossos interesses nacionais, nesse futuro: diluição da importância das nossas Forças Armadas nas Forças Armadas europeias, ou especialização, e qual o tipo de autonomia que poderíamos conquistar com essa opção, particularmente em defesa dos nossos valores históricos e económicos contidos no nosso mar e espaço aéreo. Defendi então o objetivo de umas Forças Armadas altamente especializadas, de forma a poderem ter alguma autonomia no contexto europeu, como um corpo militar profissional e detentor dos mais modernos meios, destinado a missões de salvamento de vidas humanas em acidentes no mar, na terra e no ar, acidentes que incluíam, naturalmente, os fogos. Mas não como um remendo feito à pressa para apagar incêndios, como agora se pretende, nomeadamente sem uma visão integrada, sem a certeza dos meios necessários e sem a dimensão estratégica que permita aos nossos militares atingirem os resultados, o prestigio e o reconhecimento público, nacional e internacional, que merecem, ao serviço do prestígio de Portugal e da defesa da vida de portugueses e europeus.

Poderia utilizar outros exemplos em que a ausência de estratégia compromete o futuro dos portugueses, como é o caso do crescimento da economia, que tem desaproveitado a enorme oportunidade que resulta de Portugal se situar no centro do Ocidente, entre as duas maiores economias mundiais, num tempo em que se antevê um crescimento acentuado do comércio no Atlântico e quando a logística se tornou um importante fator da competitividade das empresas e das nações. Para mais quando temos todas as condições – de localização, de competências e de competitividade dos custos – para atrair o investimento estrangeiro de empresas integradoras que recebam aqui os componentes e os sistemas de que precisam, de Portugal e de todo o mundo, e os transformem em produtos no território nacional, com o objetivo de os exportar para todo o mundo.

Num tempo em que a China prepara o seu futuro para os próximos 50 anos e alguns pequenos países como a Irlanda há muito escolheram quais são as suas oportunidades nesse futuro, Portugal não sabe para onde vai e esgota-se em decisões avulsas de curto prazo, revelando a incompetência política e estratégica da maioria dos dirigentes. A causa próxima desta situação reside no controlo não democrático exercido pelos partidos políticos sobre a sociedade, com a nota absurda de os setores mais dinâmicos da economia, as empresas privadas, nomeadamente do setor exportador, serem vigiadas e escrutinadas com desconfiança, cobertas de impostos, de burocracia e de custos improdutivos, modelo sem qualquer sentido no mundo global de concorrência, de competição e de inovação em que vivemos.

Como sabemos, em democracia existem sempre alternativas, e neste estado de degradação do pensamento estratégico e de má governação, a alternativa passa pela democratização do nosso regime político e pela alteração das leis eleitorais, a fim de permitir o acesso de todos os portugueses à participação política, feita com maior competição e mais competência na ocupação dos cargos políticos, de forma a colocar um travão na existência de governos de amigos e de familiares, como agora acontece, e de que os fogos são a consequência. É o que defendemos no “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”.
Henrique NETO
Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: 
artigo publicado no jornal i.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Estava tudo a correr tão bem

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído ontem no jornal i
O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea.


Estava tudo a correr tão bem
“A húbris é um conceito grego que pode ser traduzido como ‘tudo o que passa da medida; descomedimento’, e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que com frequência termina sendo punida.” (citado da Wikipédia).

Entre junho de 2011 e outubro de 2015 foi lançada uma campanha de ódio contra o governo de coligação AD que teve a sua “consagração” com a grandiosa manifestação contra a TSU que uniu contra o governo desde as mães de família da burguesia urbana até aos operários da cintura industrial.

Apesar dessa campanha de ódio, o PSD e o seu presidente, Passos Coelho, conseguiram em outubro de 2015 uma vitória eleitoral ao serem o partido mais votado nas eleições; com o país partido ao meio e ansioso por virar a página, António Costa e o PS conseguiram dar a volta ao resultado e montar uma frente de esquerda com apoio maioritário na Assembleia da República.

A partir daí foram só boas notícias para o governo e desastres para a oposição: na frente social caiu uma calmaria regada a euros do Orçamento do Estado; na frente económica tivemos dois anos de crescimento razoável, queda do défice, estabilização aparente da dívida e saída do patamar de lixo em que as agências de notação nos tinham colocado. E Portugal ganhou o Euro 2016. Estava tudo a correr tão bem!...

Mesmo no trágico incêndio de Pedrógão Grande, o governo conseguiu reequilibrar-se rapidamente, deixando a Marcelo Rebelo de Sousa a despesa da consolação dos povos e a confirmação de que tinha sido “feito tudo o que podia ser feito”…

Foram encontrados com rapidez e a preciosa ajuda de uns tantos fazedores de opinião os culpados do tremendo incêndio: o SIRESP e os eucaliptos. Pronto, tendo sido feito tudo o que podia ser feito e havendo culpados óbvios, o governo estava absolvido e as boas notícias continuaram a fluir ao longo do Verão.

Entretanto, António Costa fez saber que ia proceder à maior reforma da floresta desde o tempo de D. Dinis, no século XIII (depois da tragédia de outubro, temos de convir que já conseguiu: o Pinhal de Leiria, plantado por D. Dinis, ardeu quase todo).

O início de setembro ainda trouxe a Costa novas e mais excitantes boas notícias: segundo as sondagens e os comentadores, teve retumbante vitória autárquica, ampliando as maiorias absolutas em Lisboa e no Porto e… parece que conseguiu mais 1,5% de votos que há quatro anos… e que ganhou dez câmaras ao PCP…

Como a primeira regra de um bom spin é a de não deixar os factos atrapalhar uma boa notícia, ninguém se deu ao trabalho de retificar a ideia da fabulosa vitória de 1 de outubro. Estava, portanto, tudo a correr tão bem!...

O que não estava nos cálculos de António Costa era que chovesse uma semana tarde demais, mas foi o que aconteceu e, tragédia, voltou a arder tudo o que podia arder e, mais uma vez, não foi feito nada do que devia ter sido feito. As mesmas falhas de junho, a mesma falta de coordenação, a mesma falta de prevenção, de cuidado, de autoridade útil, a mesma falência do Estado.

Depois de terem demonstrado aos pobres humanos que todos os cálculos são pó, os deuses fizeram chover ainda muita coisa ardia, mas só depois de terem morrido mais umas largas dezenas de pessoas e de ter ardido o coração de Portugal.
Arrogando-se da vox deo na sua versão de vox populi, surgiu Marcelo a castigar a húbris do governo costista, a exigir-lhe humilhação e confissão dos pecados, e Costa, o equilibrista, pareceu ceder, demitiu a ministra, avança com reformas. 
Se quisermos simplificar, foi a húbris de António Costa e do seu governo, a falta de humildade democrática, que causaram a desgraça. Se tivessem escutado o muito que havia para dizer sobre estas matérias, se não tivessem embandeirado em arco com os sucessos fáceis do governo, se não estivessem convencidos de que tudo se resolve com meia dúzia de palavras e de milhões de euros, se tivessem a convicção firme de que democracia é diálogo e respeito mútuo, talvez muito daquilo que aconteceu pudesse ter sido evitado.

Para além das mortes, das perdas materiais quantas vezes sem solução à vista para o modo de vida de quem as sofreu, da tremenda perda que todos sofremos, fica a sensação de que este é um governo para o bom tempo, para quando as coisas correm de feição, e não para crises ou dificuldades, e é isso que é aterrador, a sensação de se ficar a falar sozinho, de os avisos caírem em saco roto, de que quem está em posição de mandar não ouve nem quer saber.

Entre um governo que não ouve ninguém e só finge ouvir o Presidente e uma oposição à deriva, cada qual enquistado nos seus pequenos ódios e frustrações, quem são os mediadores que nos representam perante o poder instituído? Onde estão os nossos representantes, não os das oligarquias partidárias, não os ungidos dos diretórios, mas os nossos, aqueles que nós escolhemos e que responsabilizaremos se falharem em representar-nos?

O Verão de 2017 vai ficar na nossa história como o Verão em que um governo triunfal, cheio de si e dos seus sucessos, presidiu à maior tragédia portuguesa da época contemporânea. Queira Deus que o Outono e o Inverno nos tragam um reforço da sociedade civil e da nossa capacidade de afirmação, reclamação e indignação.


João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Equívocos e clarificações necessárias

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.

Há necessidade de uma força no centro do leque político, essencialmente reformista, que acredite na economia de mercado e no papel decisivo do setor privado.



Equívocos e clarificações necessárias 
No contexto da crise por nós vivida nos últimos tempos, assistimos a uma grande controvérsia, geradora de vários equívocos, entre os que pugnavam pelo crescimento económico como fator determinante para ultrapassar a crise e os defensores da primazia da austeridade, nomeadamente no domínio das finanças públicas, com vista ao mesmo objetivo. Presentemente alcançou-se um relativo consenso de que uma certa austeridade é necessária, como pré-requisito para conseguir o crescimento. Como é óbvio, tal não implica que toda a austeridade seja aceitável, do mesmo modo que haverá que assegurar que o imprescindível crescimento é sustentável.

Esta perspetiva é particularmente relevante no contexto atual, em que o governo, mas também muitos de nós, nos regozijamos com os resultados mais recentemente alcançados pela economia portuguesa em termos de crescimento, redução do desemprego, melhoria do défice orçamental, da balança das transações externas e da dívida pública e, consequentemente, do rating do país. Mas será que todos estes resultados traduzem uma situação sustentável?

Com efeito, é por demais evidente que o país está a beneficiar da conjuntura económica extremamente favorável na esfera internacional, decorrente das políticas globalmente prosseguidas com vista a ultrapassar a crise financeira de 2008-2011. Isto não significa que as medidas governamentais adotadas entre nós de então para cá, e em particular no período mais recente, não tenham dado o seu contributo. Significa tão-só afirmar que sem as reformas estruturais necessárias e há muito identificadas, mas não concretizadas, não será possível alterar para o futuro o paradigma de comportamento que caracteriza a evolução económica no pós-25 de Abril.

Reconhecer isto é absolutamente crucial, na medida em que, se o nosso crescimento económico não melhorar significativamente e de forma sustentada, não haverá convergência com o padrão europeu nem melhoria sustentável nas condições de vida dos portugueses. Não chega pugnar por equidade e solidariedade. O “bolo” é atualmente demasiado pequeno para fazer face aos anseios da população. No limite poderá haver melhorias em franjas da população, com repercussão na distribuição de rendimentos, mas em detrimento de uma classe média que possa ser pujante e maioritária, sendo esta que constitui o suporte de uma sociedade mais justa e mais próspera. Que reformas, com que prioridades, como as concretizar e apoiadas por quem são aspetos a necessitar de urgente clarificação.

Não é este claramente o local para tratar destes aspetos. Mas é patente que entre estas reformas há que incluir a do sistema eleitoral, a da justiça e do papel do Estado (incluindo a função pública), a promoção do investimento, emprego e competitividade, nomeadamente através de uma abrangente reforma fiscal e do mercado do trabalho, com vista a maior eficiência e eficácia na gestão da coisa pública, designadamente através da regulação e do incentivo à inovação, bem como nas áreas sociais (saúde, educação, segurança social). Um tal processo de reformas, abrangente por natureza, exige obviamente um largo consenso no quadro de um desígnio para o país, mas é igualmente patente que o processo se encontra bloqueado. Os sucessivos apelos feitos por individualidades políticas ou oriundos da sociedade civil, no sentido de serem firmados pactos com esse objetivo, resultaram infrutíferos. Urge, pois, uma clarificação a nível partidário que torne possível desencadear e pôr em marcha este projeto de índole nacional.

Neste contexto convém, aliás, ter presente que os partidos existentes são, em larga medida, fruto da “ordem salazarista”, à data do 25 de Abril – inclusive à esquerda, com o domínio do PCP vindo da clandestinidade e defensor do centralismo do Estado e da economia de direção central. Com a chegada da Revolução dos Cravos surgiu, naturalmente, a necessidade do aparecimento e institucionalização de partidos políticos, com vista à implementação da democracia. É neste quadro que surgem o Partido Socialista (PS) – que havia sido criado em 1973 na Alemanha, por Mário Soares e um conjunto de personalidades integradas na Ação Socialista – e o Partido Popular Democrático (PPD), com base em personalidades da “ala liberal marcelista”, sob a égide de F. Sá Carneiro. Algum tempo depois surge o Centro Democrático Social (CDS), com base em personalidades associadas à democracia cristã.

Porém, fruto de vicissitudes relacionadas com o processo revolucionário decorrente da Revolução de Abril, o CDS não conseguiu na altura congregar uma percentagem significativa do eleitorado, em virtude da necessidade sentida por uma larga maioria da população de uma clara rotura com o modelo de governação e as ideias até aí vigentes. A grande maioria aderiu ao ideário de uma democracia social, assente no funcionamento do mercado, no primado do Estado de direito, pró-ocidental e pró-europeu, repartindo-se pelo PS e pelo PSD.

Fê-lo, porém, predominantemente em função de uma identificação com a figura de Mário Soares e o seu passado de opositor ao regime salazarista, ou tendo em conta a personalidade de Sá Carneiro, defensor de uma visão mais reformista, personalista e modernizadora para o desenvolvimento do país – no fundo, duas visões largamente coincidentes quanto ao desígnio, mas não necessariamente quanto à forma de alcançar os objetivos visados, suas prioridades e correspondentes políticas a implementar. Esta a grande contradição que nos acompanha desde o início da revolução e que nunca foi possível ultrapassar, dadas as personalidades dos dois principais protagonistas em contenda. Acresce que a necessidade de se apresentarem ao eleitorado como partidos bem diferenciados quanto às suas origens, abordagens e políticas para o país – apesar de ambos se reclamarem da social-democracia – não se revelou compatível com a celebração de pactos visando as reformas necessárias a um desenvolvimento sustentável.

A clarificação do sistema partidário surge, assim, como tema central da política em Portugal, particularmente no momento atual, em que a prática política faz com que o centro político não se encontre devidamente representado. Tal resulta basicamente da prevalência da linha mais à esquerda (e populista) no PS, como resultado da existência da geringonça e das exigências que dela decorrem, bem como da inflexão para uma direita mais liberal por parte do PSD que, aproveitando-se das exigências da troika no período do resgate económico, pretendeu ir mais além e pensou que seria com base em privatizações e impondo sacrifícios desproporcionados à classe média (incluindo trabalhadores e reformados) que o país conseguiria libertar-se dos seus problemas e alcançar um crescimento sustentável e a convergência com a Europa.

Que uma larga maioria dos cidadãos não se reveja nos partidos políticos, tal como eles presentemente surgem aos seus olhos, não carece de justificação. É manifesto o descrédito atingido pela prática governativa e os políticos em geral, consequência em larga medida de um regime político e eleitoral assente em oligarquias partidárias que capturaram o poder legislativo e a governação, e cujo móbil prioritário é a manutenção do poder. Mas é também consequência do atual leque partidário não oferecer uma alternativa correspondente aos anseios de uma classe média, em particular do seu segmento mais jovem.

Há necessidade de uma força no centro do leque político, essencialmente reformista, que acredite na economia de mercado e no papel decisivo do setor privado, mas que reconheça igualmente o papel essencial do governo e da governação enquanto incentivador e facilitador da iniciativa privada e regulador das motivações que lhe estão subjacentes. São estas que informam e caracterizam o comportamento humano e só assim será possível combater o populismo e os sistemas autocráticos.

Aguardemos, pois, e façamos votos para que a reconfiguração da liderança no PSD, atualmente em curso, possa dar um contributo significativo no alcançar destas reformas e para a emergência de um partido que tenha por lema a solidariedade e o crescimento como bases para o desenvolvimento – em suma, a social-democracia. Com efeito, ou o PSD se recentra e renova, ou algo de novo terá de surgir para congregar os verdadeiros sociais-democratas do PSD e PS.

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O Orçamento Geral do Estado corporativo

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
Só uma nova lei eleitoral que permita novas lideranças, na linha do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”, poderá avivar a esperança num verdadeiro Orçamento do Estado ao serviço de todos, proposto por um ministro das Finanças que o seja de Portugal, e não das administrações públicas e das corporações instaladas.


O Orçamento Geral do Estado corporativo 
Passadas as eleições, vai começar no parlamento o solene debate do Orçamento do Estado. Aliás, um debate pró-forma, já que, depois de aprovado, sofrerá tantos desvios, transferências e cativações, alterações ad hoc ao sabor dos interesses de ocasião, que a sua execução acabará num retrato em que ninguém reconhecerá o original. O que, aliás, não preocupa ninguém, muito menos a nomenklatura política, que considera a prestação de contas pelo governo, traduzida na apresentação da Conta Geral do Estado no parlamento, como assunto irrelevante, despachado burocraticamente em sumaríssimo debate. As questões do género, essas sim, é que são importantes.

Entretanto, diversas corporações fazem-se ouvir no Ministério das Finanças, e a todas o ministro dando resposta, o Orçamento deixa de ser do Estado para ser o Orçamento do Estado corporativo. De imediato apoiado pelos media, que fomentam à exaustão análises corporativas para todos os gostos: a do funcionário sobre os aumentos salariais, a do sindicalista sobre os seus efeitos nas negociações dos acordos coletivos, a do deputado sobre os fundos afetos ao seu círculo, a do autarca sobre as verbas que não recebe, a do burocrata, pelas magras dotações do seu serviço e pelas regalias que não obteve, a do defensor de mais Estado, pelo sempre reduzido e insuficiente aumento da despesa, e a do artista pelos escassos subsídios para a cultura, artes e cinema. E o investigador discute o “desinvestimento” na investigação, mas não diz uma palavra sobre o seu conteúdo ou sobre o número de patentes que produziu. Aliás, trabalhar para patentes seria degradar a investigação…

Durante dois meses ouviremos políticos, comentadores, grandes economistas e pensadores: uns irão analisar o Orçamento pelos objetivos que prossegue, outros pelos meios que utiliza, uns tantos pela receita, mais outros pela despesa, e muitos pelo défice, esquecendo que este é um simples efeito, e não uma causa.

O comentário refletirá apenas interesses parciais, sejam eles políticos, partidários ou corporativos; e, tomando sempre cada um a parte pelo todo, o OE é bom, sofrível ou mau para o país consoante o seu problema pessoal é resolvido, considerado ou ignorado.

Os debates na rádio e na televisão privilegiarão o espetáculo: convidam-se muitos para que ninguém diga nada, porque o tempo é escasso, mas considera-se que o show resultou. E o serviço público fica tanto mais cumprido quanto se enfatiza que não tributar mais os mais ricos é um escândalo e um desaforo.

E os raros que tentam fazer uma análise compreensiva, séria e global do Orçamento são abafados pelo ruído geral.

Por isso, de tudo se fala menos do essencial: como travar o aumento vertiginoso da dívida pública, apesar da fiscalidade asfixiante, e o nível insuportável da despesa pública que não se traduz em benefício sentido pelo cidadão e pela economia. Despesa estéril, que sustenta tarefas em duplicado, atividades sem objeto conhecido ou útil, serviços em circuito fechado, que têm em meras prestações recíprocas redundantes a sua única razão de existir, e também os pedintes institucionais que, seguindo o aforismo de quem não chora não mama, viram no aconchego do Estado um rendoso modo de vida. São eles que, afinal, moldam o Orçamento do Estado corporativo que dizem ser do Estado de todos nós. E é esse Orçamento corporativo que tanto se discute que acaba por ser o espelho da democracia sem qualidade em que vivemos.

Só uma nova lei eleitoral que permita novas lideranças, na linha do “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”, poderá avivar a esperança num verdadeiro Orçamento do Estado ao serviço de todos, proposto por um ministro das Finanças que o seja de Portugal, e não das administrações públicas e das corporações instaladas.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade