quarta-feira, 24 de junho de 2015

O segredo da troika

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.

O poder da troika não vem do volume de dinheiro. Nós pagamos mais, apesar de tudo. Vem do amor que a troika tem ao dinheiro.


O segredo da troika
Quando tantos saúdam o sucesso do programa de ajustamento em Portugal, cabe perguntar: qual foi o segredo da troika? O que fez a troika ter sucesso onde nós falhámos?

O segredo da troika não é segredo. Foi objectividade, informação exacta, transparência e prestação de contas. Se a nossa democracia tivesse objectividade, informação exacta, transparência e prestação de contas, não teríamos precisado da troika, porque não teríamos chegado ao precipício da bancarrota.

Hoje, quase todos desdenham da troika e seus agentes, mesmo quando os chamaram ou com eles contrataram sem os terem chamado. Já se esqueceram de quanto se deslumbraram com as reuniões iniciais, ou das selfies em momentos decisivos, ou de haverem reivindicado publicamente que tinham “ensinado” a troika, ou de como os seguiam pateticamente por todo o lado a cada vinda a Portugal, como se a troika fosse a própria encarnação do Espírito Santo – o divino, que não o banco.

Quando surgiu, a 17 de Maio de 2011, o Memorando de entendimento, a duas semanas de eleições, não faltou quem comentasse que “finalmente, temos um programa de governo a sério”: objectivo, rigoroso, quantificado, calendarizado, metódico. Só isto diz muito da fragilidade dos partidos. Habituámo-nos tanto a escrever para encantar – para iludir, arredondar, parecer bem – que nos esquecemos de como se escreve para resolver problemas, isto é, para governar. E as pessoas logo viram e perceberam a diferença.

Mas o mais raro nem foi a troika ter um programa de governo e recebê-lo por contrato externo. O mais absolutamente raro é ter sido cumprido de uma forma geral. Não é, afinal, verdade que os programas não são cumpridos. Este foi.

Haverá, aqui, quem atribua os dois factos – o programa e o cumprimento – ao poder da troika: ao dinheiro que nos entregou, os 78 mil milhões de euros, e ao amor que tem a esse dinheiro. Se não cumpríssemos, não recebíamos o dinheiro – o que em boa parte é verdade, pois cada desembolso estava condicionado a uma avaliação positiva anterior.

Esta constatação ajuda-nos a situar o cancro da nossa democracia. Nós, cidadãos, entregamos ao Estado muito mais dinheiro do que a troika. A troika emprestou-nos muito dinheiro: 78 mil milhões de euros! Mas nós, cidadãos, entregamos muito mais. Nos três anos de programa da troika, os contribuintes portugueses pagaram ao Estado, em impostos e contribuições sociais, mais do dobro: 168 mil milhões de euros! E nos anos da legislatura (2011 a 2015) pagámos ao Estado quase 230 mil milhões de euros, o triplo da troika.

O poder da troika não vem do volume de dinheiro. Nós pagamos mais, apesar de tudo. Vem do amor que a troika tem ao dinheiro – e da exigência e cuidado, portanto, com que o trata. Em contrapartida, a nossa fraqueza, assim como o declínio medíocre da nossa democracia, tem a ver com o pouco amor que temos ao dinheiro que pagamos e com o desprezo com que deixamos tratarem-nos. Somos desleixados no nosso contrato interno. E pagamos o preço desse nosso desleixo.

A troika fazia avaliações trimestrais. E nós? Nada. Nenhuma – uma coisa vaga de eleição em eleição. As avaliações parlamentares são um baile mandado inconsequente: o guião está escrito, os papéis distribuídos, os lugares marcados. Não há verdadeiro exame objectivo das coisas – é mais pugilato político. Nem os deputados estão lá para perguntar matéria objectiva – mais para apoiar, ou para embaraçar. Alguém imagina a troika a gastar o seu tempo com a discussão de uma gafe? Nós, ao contrário, adoramos banalidades e faits divers.

Dir-se-á que é natural o jogo maioria/oposição ser assim; em parte, é verdade. Mas, então, a prestação de contas deveria ser feita dentro dos partidos: à porta fechada, semanalmente nos grupos parlamentares, mensalmente nos órgãos de direcção política, trimestralmente nos de maior representação, examinando o grau de cumprimento dos programas, marcando o ritmo, exigindo pontualidade e fidelidade ao que foi prometido, representando as bases e o eleitorado. Nada disso: os partidos foram tomados, subvertidos e invertidos. Tornaram-se aparelhos de poder, funcionando de cima para baixo: câmaras de ressonância de quem gasta, não organismos de representação de quem paga. O contribuinte, o eleitor, o cidadão foram arredados do sistema. É essa a decadência da nossa democracia; e a ruína do nosso país.

O lema parlamentar é “no taxation without representation” – ora, hoje, funcionamos realmente sem representação. Falta-nos recuperar para a cidadania os mesmos mecanismos elementares da troika: objectividade, informação exacta, transparência e prestação de contas. Para repetir o inglês, é tudo uma questão de accountability… Temos palavras para isso: “prestação de contas”. Só nos falta o zelo de a aplicar.

Se os partidos funcionarem de baixo para cima, com cultura de participação, de abertura, de informação e transparência, de rigor e objectividade, em vez de meras faroladas e números de circo, a democracia salva-se e nunca mais teremos ruína. Porquê? Porque exerceremos o amor, a exigência, o cuidado com o nosso dinheiro.

Como fazer? Reformar, como prioridade, o sistema eleitoral, na linha defendida pelo manifesto Por Uma Democracia de Qualidade. Só isso, personalizando o deputado, conduzirá à reforma do sistema partidário, restituindo-lhe a saúde que perdeu. Teremos representantes, seremos representados. Far-nos-emos ouvir.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado, Deputado
NOTA: artigo publicado no jornal i.

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