quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

No país dos salamaleques

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, hoje saído no jornal i.

É preciso acabar com os salamaleques e tornar o sistema operacional e eficiente. Se não o fizermos, o que não queremos que nos entre pela porta entra-nos violentamente pela janela.

No país dos salamaleques 

Das notícias da semana passada houve uma que especialmente me impressionou: no domingo 25, o Syrisa ganhou as eleições gregas; na segunda-feira 26, à hora do almoço, Alexis Tsipras anunciou ter concluído um acordo de governação e foi recebido pelo presidente da República para ser convidado a formar governo; na terça-feira deu-se a passagem de poder entre a Nova Democracia e o Syrisa; na quarta dia 28, o novo governo de coligação tomou posse, numa cerimónia previamente negociada com a Igreja Ortodoxa, de forma que os ministros do Syrisa não jurassem sobre a Bíblia perante o patriarca, e o novo governo iniciou trabalhos com um conselho de ministros.

Antes mesmo que o resto da Europa tivesse tido tempo para digerir as notícias, o governo grego estava a tomar decisões.

Por um lado, um futuro governo que se prepara e está pronto a governar é assim. Não anda um mês à procura de "ministeriáveis" que acabam por sair das tocas mais improváveis, de sítios recônditos no Canadá ou de esconsos lugares burocráticos em Bruxelas. Os "ministeriáveis" sabe-se quem são, são aqueles que na oposição deram a cara por determinadas ideias e políticas, aqueles em quem as pessoas votaram, e não outros.

Por outro lado, há aqui uma agilidade constitucional que é surpreendente, sobretudo num país como a Grécia, do qual temos a ideia - erradíssima - de que seria um país indolente, que arrasta os pés.

Em Portugal teríamos de esperar que a Comissão Nacional de Eleições validasse os resultados eleitorais, como se o sistema de contagem de votos não fosse fiável; que os resultados fossem publicados em Diário da República; que perante eles o Presidente chamasse o líder do partido mais votado e que este, na ausência de uma maioria absoluta, andasse umas semanas à procura de um parceiro com o qual pudesse negociar uma coligação (leia-se partilha de lugares ministeriais); que o líder do partido mais votado se apresentasse finalmente perante o Presidente com a sua solução de governo, antes de finalmente lhe ser dada posse. Em tudo isto perdem-se semanas ou meses. Meses!

Neste lapso de tempo, quem perdeu as eleições continua a governar, numa fórmula consagrada chamada "governo de gestão". O governo de gestão, sobre o qual foram já emitidos eminentes pareceres jurídicos e até acórdãos do Tribunal Constitucional, tem tendência para abusar dos seus poderes e não raro decide decidir "em gestão" matérias que não decidiu em quatro anos de governo, como por exemplo adjudicar licenças de casino ou contratos de empreitada de TGV, ou novos "campus da justiça".

Diz-se que na Grécia, na evidente iminência de sair do governo, o Sr. Samaras mandou retirar os discos rígidos dos computadores. Nada de novo: em Portugal é prática assente, bem como os chips dos telefones fixos, mais as cópias de milhares de documentos e, até nalguns casos, a remoção dos próprios documentos. Há tempo para tudo, até para proceder a nomeações de última hora...

Como é evidente, e a Grécia nos demonstrou, esta situação não pode manter-se. Alguns exemplos são bem demonstrativos: em 2011 o PS perdeu as eleições e na pendência da "gestão" negociou e subscreveu o acordo do Memorando de entendimento que o PSD teria de executar; este ano, o PSD vai apresentar um Orçamento para 2016, que deveria ser votado em cima das eleições, para que quem as ganhe execute, e se for o PS a ganhá-las dificilmente se conformará com esse Orçamento...

Já agora, espero que tenham reparado que entre a convocação das eleições na Grécia e a sua realização mediaram 20 dias, mais três para a tomada de posse, 23 dias desde que as eleições foram convocadas. Em Portugal teríamos três ou quatro meses.

Desta comparação que nos resulta altamente desfavorável, o que devemos concluir é que todos estes salamaleques pseudodemocráticos são realmente muito pouco democráticos e tendentes a distorcer a vontade expressa nas urnas.

Estes e outros aspectos da nossa lei eleitoral têm de ser corrigidos. São cada vez mais aqueles que entendem que precisamos de adequar a nossa lei eleitoral à necessidade de aproximar eleitores de eleitos, de dar uma voz cada vez mais activa aos cidadãos, de quebrar os monopólios partidários de escolha da representação, de envolver a sociedade nessa escolha de uma forma mais empenhada. Mas também é necessário acabar com estes salamaleques e tornar o sistema mais operacional e eficiente.

Se não o fizermos, arriscamo-nos a que aquilo que não queremos que nos entre pela porta nos entre violentamente pela janela.

JOÃO LUÍS MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça,
subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

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