quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O ano da tempestade perfeita

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, ontem saído no jornal i.
O Papa Francisco, em apenas um ano, tornou-se o líder natural de um planeta em que ele pretende a mudança e a instauração de uma ética da responsabilidade. 

O ano da tempestade perfeita
O ano de 2014 terminou sem nos deixar grandes razões para festejar, seja no plano nacional seja no plano internacional. Neste, apenas a emergência do Papa Francisco como líder global pode constituir um factor de regozijo, não apenas da Igreja de Roma, mas também da governação dos povos e da humanidade em geral. A sabedoria de Francisco, transmitida com humor, simplicidade e profundidade, representa uma rotura saudável com a ausência de projecto do discurso político dominante.
Pela sua extraordinária capacidade de comunicação, pela verdade e seriedade que coloca no que diz e faz, pela visível compreensão dos problemas que se abatem sobre a humanidade do nosso tempo, o Papa Francisco, em apenas um ano, tornou-se o líder natural de um planeta em que ele pretende a mudança e a instauração de uma ética da responsabilidade. Aquilo que os líderes políticos fazem por ignorar, como a ditadura do sistema financeiro global, a acumulação de riqueza sem objectivo socialmente útil, a negligência das crianças e a dispensabilidade social dos velhos, o desemprego e a violência como forma de resolução de conflitos religiosos e políticos, são tudo temas tratados pelo Papa com severidade, visão e sem o cinismo dominante na actividade política.
Não sei se a emergência deste Papa no debate interno da Igreja, mas também no debate mais amplo da governação mundial, resultou de um acidente virtuoso mas sem continuidade, ou se, pelo contrário, se trata de um novo caminho consciente da Igreja em direcção à pureza do pensamento filosófico do cristianismo. Mas sei que este é o caminho certo, não apenas para a Igreja de Roma, mas também para as mudanças necessárias no modelo político, económico e social da Europa e do mundo global à deriva, na ausência de uma governação planetária.
No plano nacional, o ano de 2014 foi o da tempestade perfeita. Fruto de um sistema político moralmente corrupto, que sobrevive sem grandeza e com a maioria dos eleitos do povo a representar apenas os poderes dominantes, os sucessivos desastres de grupos económicos e financeiros do regime e a prisão de altos quadros políticos e da administração, incluindo um ex-primeiro-ministro, são factos reveladores do estado de degradação permitida, frequentemente incentivada, pelas decisões dos governos e pela passividade cooperante dos deputados da Assembleia da República.
No final do ano, os casos do BES/GES e a prisão preventiva de José Sócrates dominaram a atenção dos portugueses, abatidos pelo empobrecimento, pelo desemprego e por uma sangria emigratória da dimensão da dos anos 60 do século passado. No primeiro caso, passaram pela comissão de inquérito governantes, reguladores e gestores financeiros, todos apostados em provar o seu desconhecimento dos indícios do desastre e a sua inocência relativamente às causas. No segundo caso, a prisão de Évora tem sido lugar de romaria de visitas de ex-responsáveis políticos, indiferentes à contribuição dada por José Sócrates para o desastre económico, financeiro e social em que Portugal mergulhou e à amoralidade dos seus comportamentos pessoais e políticos. Muitos não hesitaram mesmo em atacar a justiça e os juízes envolvidos nos processos como se ainda vivêssemos os tempos dos tribunais plenários do anterior regime.
A presunção de inocência tem servido para desculpar o ex -primeiro-ministro e para esconder as responsabilidades de alguns dos visitantes por uma parte relevante do estado de degradação a que chegou o nosso regime político, caracterizado por uma democracia de fachada e dominado pela corrupção, pelo secretismo e pelo compadrio. As 60 empresas do amigo de José Sócrates são, neste contexto, um caso de estudo, no sentido de compreendermos as causas de a economia portuguesa não crescer há mais de uma década.
Assim, pela contribuição de José Sócrates para o desastre económico nacional, pela promiscuidade entre a política e os negócios que ele incentivou e pela incompetência governativa que deixou os portugueses na dependência de um sistema financeiro globalizado e igualmente amoral, a sua previsível prisão é uma bênção que deve ser aproveitada para se reformar o nosso regime político, na direcção da decência democrática preconizada pelo Papa Francisco.
HENRIQUE NETO
Empresário


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