quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O “napalm” como arte dirigente

Robert Duvall na pele do tenente-coronel Kilgore. 
Foi este o momento cinematográfico que me ocorreu num artigo que escrevi sobre factos que não me agradam, nem alegram, e que saiu hoje no jornal PÚBLICO.

A célebre cena do Apocalypse Now - ver aos 1' 35".
O “napalm” como arte dirigente
- por José Ribeiro e Castro

“I love the smell of napalm in the morning” –  é uma tirada inesquecível do "Apocalypse Now". Para os cinéfilos, a frase de Robert Duvall ficou como emblema do prazer no esmagamento dos adversários. Foi o que me veio à memória perante o maremoto disciplinar para expulsão de militantes desencadeado a seguir às autárquicas. O rasto ainda prossegue.
A imprensa destacou 396 processos no PSD. Houve mais alguns. Mas registaram-se, ao menos, reacções. No CDS-PP, o número é proporcionado: entre 50 e 100, ninguém sabe ao certo. A diferença é não haver nem notícia, nem reacção. O modo é mais Bierknau: a repressão vem na companhia do silêncio.
Do PSD sei pouco e dos seus Estatutos ainda menos. Mas do CDS não recordo outros tempos assim. Não me lembro de vaga tão grande de perseguição disciplinar. Não está certo. Não gera coisa boa.

A norma estatutária para o fuzilamento disciplinar é a que sanciona a candidatura em listas opostas à do próprio partido. Dificilmente pode contestar-se tal norma. Mas o facto de existir não quer dizer que se desate a aplicá-la em automático, como furriel tiranete que lê o RDM sem sequer o interpretar: «Está escrito, meu coronel!» A pena de expulsão, sendo a mais grave de todas, deve funcionar, aliás, como um travão e não como estímulo. Os remédios são políticos e raramente disciplinares, porque também os problemas foram, na quase totalidade, políticos e não disciplinares.
Não conheço todos os casos que geraram tamanha fúria disciplinar dos poderes internos. Mas, em geral, as dissensões locais foram efeito de processos decisórios insuficientes, irregulares ou mesmo ilegítimos. E quase todas decorreram de alterações súbitas de orientação ou de escolhas políticas de última hora, não podendo censurar-se haver quem não tenha os rins ajeitados a todo o tipo de curvas e contra-curvas. Ou seja, são casos que devem inspirar… introspecção e não expulsão.
Aveiro concentra, no CDS-PP, a maior vaga de perseguições. Creio ter sido possível evitar uma debandada, como foi imediata tentação de muitos. Aguardam a decisão dos processos, se a houver. Mas dois históricos aveirenses, um da fundação do CDS, com quase 40 anos de partido (o Santos Costa), outro com cerca de 30 (o Jorge Nascimento) perderam a paciência e desfiliaram-se. Não está certo. O CDS deve-lhes muito. E ficou mais pobre.

Estas vagas de repressão servem também, habitualmente, de biombo circunstancial a ajustes de contas. É dos livros. E a prática confirma. Conheço dois casos, que são uma absoluta vergonha.
Um é também em Aveiro. O réu chama-se Diogo Soares Machado. Não foi candidato contra o partido, mas é como se tivesse sido. A acusação diz que não foi candidato, mas certamente pensou sê-lo!... Tem de voltar-se ao princípio para ter a certeza que se está no CDS. É verdade: passa-se mesmo no CDS. Depois, é acusado por pai, irmão e mulher terem sido candidatos. Lê-se e não se acredita. Enfim, foi logo pedida a suspensão preventiva com o fundamento – pasme-se! – de ser impedido de participar no plenário que iria apreciar… as autárquicas. A suspensão foi decretada sem sequer o ouvirem. Pum! Com uma particularidade adicional: pelo regulamento, é o relator que pode pedir a suspensão e o presidente jurisdicional decidi-la. A coisa foi um poucochinho mais caseira: a acusação, assumindo o papel da relatora, pediu-a logo; e a relatora decidiu-a, confundindo chapéu com o de presidente. Entretanto, esgotaram-se os prazos para a decisão final. Mas para quê maçar-nos, se uma “suspensão” ad eternum faz suficientemente a função?
O outro é na Batalha e mais gritante. O réu chama-se Horácio Moita Francisco, um dos mais antigos militantes do distrito. Aqui, não é por ter sido candidato contra o partido; é por o terem impedido, contra a vontade dos militantes, de ser o candidato do partido. Tudo é tão obsessivo e persecutório que roça as raias da doença. Em plenário, os militantes da Batalha escolheram-no como cabeça-de-lista – ele era, aliás, o vereador, posto que reconquistara para o CDS em 2009. Mas os dirigentes, distrital e nacionais, não apreciam a democracia interna. Toca de fazer gato-sapato do plenário concelhio e nomear à força quem os militantes não queriam.  Estes protestaram. Apresentaram reclamação – não foi respondida. Apresentaram participações disciplinares – não tiveram sequência. Reagiram, em desespero de causa, sem sucesso, junto dos tribunais. Às tantas, convocaram novo plenário para apreciar uma moção de censura ao presidente da concelhia, o favorito dos dirigentes: pela primeira vez na história do CDS e, creio, no mundo inteiro, a moção de censura teve unanimidade. A concelhia caiu duas vezes: além de o presidente ser censurado, todos os demais membros se demitiram contra aquele, provocando também a queda por falta de quórum. Perante isto, o que faz a direcção? Primeiro, uma espécie de genocídio administrativo: bloqueia a marcação de novas eleições para a concelhia, despreza os plenários, ficciona que a censura nunca existiu e marca as eleições para o Congresso em Leiria, e não na Batalha, onde sempre tiveram lugar. Segundo, instaura processos a militantes porque recorreram aos meios próprios do Estado de direito – isto é, são processados porque cumpriram os estatutos e as leis. Terceiro, faz decretar logo a “suspensão preventiva” sem audição prévia e impede, antes mesmo do trânsito em julgado da suspensão, o militante-alvo de ser candidato a delegado ao Congresso. Perseguição pura: pessoal, arbitrária e bem dirigida – o Direito feito macacada.

Mais do que as perseguições, choca-me a indiferença. Nunca consegui esquecer a frase que, estudante, li numa sala de audiências no Palácio da Justiça: “uma injustiça feita a alguém é uma ameaça contra todos.” 
Choca este estado do Estado de direito na casa dos que governam: quando um “partido democrático” do “arco da governabilidade” está assim, é por dentro e pela base que começa a construção do Estado de Direito.
publicado pelo jornal PÚBLICO, na edição de 2-Janeiro-2014

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