segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O discurso da dependência

 

Hoje, em notícia do jornal PÚBLICO, a deputada Teresa Leal Coelho, que é vice-presidente do PSD, enuncia,  talvez levada por entusiasmos de revisão constitucional, uma tese perigosíssima: a de que devemos rever a Constituição para nos adequarmos ao direito europeu. Ou seja, já não somos nós que conformamos a Europa (junto com outros), mas a Europa que nos conforma e manda em nós. Independência nacional... viste-la!

Teresa Leal Coelho, chamada a comentar o tema da eventual revisão das leis eleitorais, começou por dizer que «o PSD tem também total disponibilidade para ajustar temas de revisão constitucional e não apenas em matéria eleitoral».  E logo avançou para afirmar que «a Constituição deve ser garantística, mas mais flexível, para que se adapte às actuais circunstâncias de Portugal», o que até estaria muito bem. Mas logo lhe escorregou o pé para o deslize fatal: «Somos um Estado-membro da União Europeia, a Constituição foi sendo revista e adaptada às normas europeias, mas temos de ter uma Constituição compatível com o direito europeu.»

A tese parece amadurecida, pois logo explica que a sua opinião é a de que «há incompatibilidade entre o primado do direito europeu e as obrigações decorrentes dos compromissos que Portugal assinou no plano da União Europeia e as interpretações soberanistas/positivistas da Constituição», frisando que esta incompatibilidade «traz efeitos colaterais no que diz respeito ao cumprimento das obrigações decorrentes do vínculo de Portugal à União». A jornalista do PÚBLICO elogia-a mesmo como "contundente", quando Teresa Leal Coelho convoca o velho estribilho anti-salazarista do "orgulhosamente sós" para embelezar a sua tese: «A visão positivista da Constituição, ignorando o plano da União Europeia, coloca Portugal numa posição de quase orgulhosamente sós, pelo facto de não nos compatibilizar com o quadro normativo da União Europeia, quando fomos nós que nos vinculámos à União.» E logo conclui que «tem de haver conciliação ou convergência que permita que não surjam danos colaterais.»

Sou, de há muito, desde sempre, um estrénuo defensor da revisão constitucional. Tenho  escritos incontáveis e várias intervenções nesse sentido. Quando passaram 30 anos da Constituição, em 2006, era eu Presidente do CDS, organizei um ciclo de três colóquios preparando e apontando à "emergência de um novo espírito constituinte". Hoje, vou até mais longe e simpatizo com a ideia, lançada por Narana Coissoró, de uma "nova Constituição". Lamento - e critico - que a questão da revisão constitucional tenha sido totalmente abandonada pela direcção do CDS, levando a que o PSD a deixasse cair também, por falta de condições e de companhia. Conheço - e reconheço - as muitas dificuldades da empresa, que, todavia, é estratégica e absolutamente necessária. Mantenho-me nessa orientação e direcção.

Mas, ai de nós, se abandonamos a ideia-matriz da nossa plena liberdade constituinte! Nesse dia, seríamos vassalos. Por aí, não! Teresa Leal Coelho tem razão em defender a revisão constituional. Mas não com aquele espírito e argumento.

A história do "primado do direito europeu", invocado por Teresa Leal Coelho, aliás, é uma questão que não acabou, nem está acabada - e ainda fará correr muita tinta. É das histórias mais tristes da nossa decadência e da disponibilidade residente nas nossas elites para vergarem a cerviz (a delas e... a nossa): fizemos, a respeito dessa matéria, em 2004, uma revisão constitucional para acomodar,  com uma redacção tautológica (o actual artigo 8º, n.º 4 CRP), uma muito contestada norma que constaria da Constituição Europeia e, depois, nem houve Constituição Europeia, nem essa norma do tratado ficou como estava de início. Ou seja, agachámo-nos... para nada. Ficámos apenas de cócoras.

É indispensável não prosseguir esse caminho de abdicação, decadência e apagamento.  E mudar de espírito. Portugal somos nós. Certamente, Portugal na Europa. Mas nós na Europa; não a Europa em cima de nós.

Vou descobrindo, dia a dia, que a causa do 1º de Dezembro é bem mais importante do que, à primeira vista, até a mim me parecia.


3 comentários:

Unknown disse...

Uma nova contituição tem de vir de um novo processo revolucionário, não simplesmente evoluir daqueles que apegados ao fim de uma sociedade decadente tentam a todo o custo agarrar-se ainda mais ao que já não pode ser salvo. Uma nova contituição deverá adevir de uma nova força que se proponha a um novo projecto de sociedade, terá de ter sangue novo.

João Luis Mota Campos disse...

Na verdade a nossa constituição já está sujeita ao Direito Europeu, que se lhe sobrepõe. Podemos lamentar ou não, mas é um facto.

José Ribeiro e Castro disse...

As coisas não são assim tão simples, nem tão lineares, meu caro João Luís. Como sabes, há constitucionalistas qualificados que recusam - e bem - esse entendimento simplista.
É, de facto, de lamentar como nos agachámos (para nada...) na revisão constitucional de 2004. Mas, tudo visto e ponderado, tendo em conta os textos que ficaram (na nossa CRP e no Tratado de Lisboa), há leituras mais conformes há nossa soberania constitucional. De resto, o que pusemos (e gera dúvidas) podemos tirar.
O Tribunal Constitucional alemão, por exemplo, nunca abdicou da soberania constitucional alemã e o Tratado é exactamente o mesmo.