quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Multiculturalismo: refrescar ideias


O multiculturalismo tem feito correr rios de tinta nos últimos anos, em particular na Europa. De tema obrigatório tornou-se quase um assunto maldito. Multiculturalismo, sim ou não? Possível ou impossível? Utopia ou realidade? Positivo ou negativo? A implementar ou a abandonar?

Para as visões negativas muito contribuíram os manifestos fracassos das políticas dirigidas nesse sentido nalguns dos maiores países europeus, com eclosão frequente de choques e tensões com comunidades emigrantes. Alemanha, França, Bélgica, até a Holanda, militam entre os maus exemplos. O Reino Unido enfrenta problemas agudos em muitas cidades. Espanha e Itália não escapam; e sinais negativos aparecem igualmente na Dinamarca e noutros países escandinavos. 

O optimismo multi-étnico e multicultural foi dando lugar ao pessimismo mais sombrio. Passou-se praticamente do politicamente correcto ao tabu.

Penso que, na verdade, existia (e mantém-se nalguns círculos) demasiado angelismo, superficialidade e simplificação na pregação multiculturalista que abundou. É a ilusão que sempre antecede a desilusão.

Mas a abertura aos outros e a capacidade de construir sociedades de pluralidade e integração são propósitos que sempre me atraíram. É o que aprendi a cultivar na maneira de ser dos portugueses, conforme me foi ensinada e a assimilei.

Por isso, para refrescar convicções no multiculturalismo, voltar a Macau faz sempre bem. Aqui convivem, cruzam-se e trabalham, todos os dias, centenas de milhar de pessoas de todas as partes: chineses de muitos lugares, portugueses, ingleses e outros europeus mais raros, indonésios, filipinos, malaios, vietnamitas, indianos, paquistaneses, mongóis, brasileiros, cabo-verdeanos, angolanos, americanos e australianos, japoneses, coreanos, tailandeses, cingaleses, indianos, paquistaneses, qataris, e eu sei lá mais quem, com - naturalmente - mestiços de todas as sortes. Cultos religiosos há-os igualmente vários; e os costumes transparecem diferentes, na maneira de vestir e de comer.

A índole especial dos portugueses, que administraram Macau desde o século XVI até 1999, terá alguma coisa a ver com isto. Mas há seguramente outros factores, pois Hong Kong não é muito diferente neste aspecto e há outros lugares assim por estas bandas da Ásia. Um factor que me ocorreu é a circunstância de se tratar de um território em que a autoridade política nunca quis impor-se e sobrepor-se à maioria cultural; e em que, simultaneamente, a maioria étnica e cultural aceitou essa autoridade política estranha. Outro factor tem a ver com o próprio fervilhar de culturas, etnias e religiões que caracteriza estes mares e terras no sul da Ásia. O Mediterrâneo é pequeno quando comparado com este espaço que vai das costas da Índia e da Indochina à península da Coreia e, a sul, à Austrália.

Disso se faz o multiculturalismo: diferenças que entre si todas se aceitam e se habituam. A coisa é tão forte que se torna ela própria uma identidade. Por isso, não há crise de identidade: cada um tem a sua e todos têm a de todos.

Limitação de mandatos: pontaria falhada outra vez

Foi o Bloco de Esquerda que levantou esta última lebre, na reclamação apresentada contra a candidatura de Luís Filipe Menezes no Porto, como o PÚBLICO noticiou. E o jornal i correu logo atrás.

Noticiou o PÚBLICO, anteontem: «O BE recorda, por isso, dois projectos de lei do PSD e do CDS, de 2001 e 2003, que, apesar de rejeitados, demonstram que a "limitação dos mandatos pretendida pelos deputados é funcional e não territorial".» E acrescentava, ontem, em título, o jornal i: «PSD e CDS defenderam limitação de mandatos aplicada à função».

O Bloco de Esquerda - é preciso ter presente - não tem nesta matéria a mais leve independência. Por um lado, é o único partido que defende uma tese  restritiva própria, que, de facto, sempre sustentou continuamente em sucessivas legislaturas parlamentares - mas viu os seus projectos de lei sempre derrotados. Por outro lado, é um partido concorrente a estas eleições autárquicas e aquele que conduz precisamente a impugnação judicial de 11 candidaturas doutros concorrentes, com base neste fundamento da "limitação de mandatos".

Por isso, quando o BE apresenta um argumento, não é para acreditar, é para desconfiar: não se deve dar logo por certo, é preciso ir verificar bem a solidez do argumento ou a falta dela. Porquê? Porque o BE não possa ter razão? Não. Até pode ter. Mas apenas porque o BE é parte interessada: não tem isenção, nem imparcialidade; e a sua objectividade pode estar toldada. Neste caso, está efectivamente toldada e os advogados do BE procuraram induzir em erro os juízes. Isto é, "defenderam a sua dama", a impugnação.

À falta do texto da reclamação do BE (que, entretanto, foi já rejeitada), sigamos a notícia do i.

A notícia cita bem: «Dois anos antes de o parlamento aprovar a limitação de mandatos [ou seja, na IX Legislatura, em 2003], PSD e CDS apresentaram um projecto que impedia presidentes de câmara e de junta de cumprir "mais de três mandatos nas respectivas funções".» Mas conclui mal: o significado do projecto não é o que se pôs no título.

O mesmo se passa, quando a notícia vai mais atrás, à VIII Legislatura: «O histórico de tentativas, por parte de vários partidos, de avançar com a limitação de mandatos no poder local vai até ao início dos anos 90. Mas basta ir à legislatura anterior, a oitava, para encontrar outros projectos de lei que defendem esta medida. Da autoria do Bloco de Esquerda (que volta a apresentar uma proposta em 2005, num texto que é debatido em simultâneo com a proposta do governo que dará origem à actual lei de limitação de mandatos). E um outro do CDS. Assinado pelo deputado Basílio Horta (agora no PS), o texto "procura assegurar a renovação do sistema, criando-se condições para o exercício transparente das funções autárquicas, prevendo-se um limite máximo de mandatos para o exercício das funções de presidente da câmara e de vereadores do executivo a quem tenham sido atribuídos pelouros". O projecto foi chumbado: teve os votos contra da esquerda e a abstenção do PSD.» Tudo isto está globalmente certo. Mas o significado, uma vez mais, não é de todo aquele que se pôs em título.

Recapitulemos, então, os factos reais e objectivos.

VIII Legislatura (1999/02) foi aquela em que foi aprovada a actual Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais: a Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, que resultou fundamentalmente da Proposta de Lei n.º 34/VIII, do então Governo PS (Guterres), apresentada a 20 de Junho de 2000 e cujo processo legislativo pode ser recordado ao pormenor através do portal da Assembleia da República. Entrada esta iniciativa do Governo, vários outros partidos (entre os quais CDS-PP, BE e PSD) apresentaram projectos de lei próprios, a fim de entrarem em discussão conjunta. A sequência fundamental pode ser vista aqui. A discussão conjunta de todos esses textos (e outros) teve lugar a 7 de Fevereiro de 2001, ocorrendo a votação na generalidade a 8 de Fevereiro. E a votação final global do diploma resultante dos variados trabalhos parlamentares ocorreu a 28 de Junho de 2001. A nova lei eleitoral teve os votos favoráveis dos PS, CDS-PP e BE; e as abstenções de PSD, PCP e PEV. E não tinha uma única norma sobre limitação de mandatos.

Foi neste contexto que o PSD apresentou, em 30 de Janeiro de 2001, o seu Projecto de Lei n.º 357/VIII, já em cima do referido debate na generalidade. Pela respectiva folha do processo legislativo, verificamos que ainda foi aprovado na generalidade (com a abstenção do PS), para o efeito de baixar também à comissão para os trabalhos na especialidade. Mas não viu as suas orientações acolhida, razão por que o PSD se absteria na votação final da lei. O projecto do PSD não tinha, aliás, nada sobre limitação de mandatos.

E foi também neste quadro que, efectivamente, como o i recorda, BE e CDS apresentaram propostas que tocavam já o tema da limitação de mandatos. Ambas entraram a 31 de Janeiro de 2001, em cima do aprazado debate na generalidade.

Projecto de Lei 360/VIII do BE procurava introduzir a limitação a dois mandatos dos presidentes e vereadores a tempo inteiro, usando uma redacção, porém, que hoje seria igualmente equívoca na querela que se montou entre a "função" e o "território": «O cargo de presidente ou de vereador a tempo inteiro não pode ser exercido pelo mesmo cidadão por mais de dois mandatos consecutivos.» Mas, seja como for, a ideia do Bloco foi logo chumbada na votação na generalidade e não teve qualquer sequência, como se verifica na respectiva folha de processo parlamentar. Curiosamente, porém, como já acima referi, o BE votaria ao lado do PS e do CDS a aprovação da nova eleitoral autárquica, apesar de esta nada conter sobre limitação de mandatos.

Por seu turno, o Projeto de Lei 364/VIII do CDS-PP tem, na verdade, o conteúdo que o jornal i recorda, mas sem o alcance que pretende. Logo na Exposição de Motivos, o CDS declara que «procura-se assegurar a renovação do sistema, (...) prevendo-se um limite máximo de mandatos para o exercício das funções de presidente da câmara e de vereadores do executivo a quem tenham sido atribuídos pelouros.» E explica que, «ao consagrar-se uma limitação de três mandatos, ou seja um período de 12 anos, assegura-se a legítima aspiração dos titulares destes órgãos de apresentarem obra feita em prol da suas populações, evitando-se, ao mesmo tempo, a criação de dependências, temores reverenciais ou cumplicidades indesejáveis num sistema que se pretende livre, plural e transparente. Acresce que, com esta alteração, promove-se a renovação da classe política estimulando a participação dos mais novos.» E, desde logo, esta fundamentação é clara a apontar para a limitação territorial, quer ao querer proteger a realização de obra (a tese do CDS quanto aos três mandatos: planear, executar, concluir), quer ao identificar como ratio legis afastar o condicionamento do eleitorado por uma rede de "dependências, temores e cumplicidades" gerada pelo prolongado exercício do poder no mesmo local. E, na verdade, no articulado, este propósito não é contemplado nas normas relativas a inelegibilidades, fossem as absolutas (art.º 5º), fossem as relativas (art.º 6º) - como seria tecnicamente o correcto se se quisesse efectivamente barrar a candidatura a Presidente de Câmara Municipal em qualquer lugar a um presidente que já o tivesse sido por três vezes consecutivas. Antes a questão é tratada já na parte final do projecto, num Capítulo sobre "mandato", dizendo-se: «Os titulares dos mandatos de presidente da câmara municipal e de vereadores que têm ou tenham tido pelouros atribuídos na gestão municipal, não podem ser reeleitos mais de três mandatos consecutivos.» (cfr. art.º 216º, n.º 3) O uso do verbo "reeleger" indicia suficientemente o que o CDS pretendia: impedir a reeleição para além do terceiro mandato consecutivo, ou seja, sempre na mesma autarquia tanto para o "consecutivo", como para se ser "reeleito". Mas, fosse como fosse, o projecto de lei do CDS foi logo rejeitado na votação na generalidade, não tendo sequência, como se vê na respectiva folha de processo parlamentar. E, curiosamente, como já recordei há pouco, o CDS viria a aprovar a versão final da lei, a par do PS e do BE.

Fica, assim, suficiente revista a história de 2001, que não tem nada a ver com aquilo que o Bloco procurou, agora, aparentemente, dar a entender e o jornal i amplificou. E passemos à história de 2003.

Na IX Legislatura (2002/05), vários partidos apresentaram, de facto, textos apontados à limitação de mandatos autárquicos (além de outros), cujo teor e tramitação podemos seguir, uma vez mais, ao pormenor, nas respectivas folhas de processo: os PSD e CDS (então em coligação de governo) apresentaram o Projecto de Lei 276/IX; o BE apresentou o Projecto de Lei 277/IX; e o PS apresentou o Projecto de Lei 280/IX.

Todos estes textos foram apresentados na mesma data - 24 de Abril de 2003 - e todos tiveram o mesmíssimo percurso e destino: foram encaminhados para a Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político e caducaram. Ou seja, não passaram de textos que, na prática, serviram para continuarem a alimentar um debate político mais geral que então decorria no Parlamento.

Este debate, mais alargado e profundo, teve, aliás, quanto ao tema específico da limitação de mandatos, um eco prático na revisão constitucional que foi efectuada nessa mesma legislatura. A revisão constitucional de 2004 aditou um novo n.º 2 ao artigo da Constituição relativo ao princípio da renovação (art.º 118º, nº 2 CRP: «A lei pode determinar limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos.»), o que viria a permitir a futura lei de limitação de mandatos finalmente adoptada na X Legislatura, já em 2005.

Aqueles textos legislativos de 2033 não tiveram, assim, o menor andamento prático.

projecto PSD/CDS tem, de facto, a redacção muito pouco feliz que o jornal i refere: «Não podem exercer mais de três mandatos sucessivos nas respectivas funções os seguintes titulares: (a) Presidentes de câmara municipal; (b) Presidentes de juntas de freguesia (...)» (cfr. art.º 1º)  Mas, sendo embora um texto pouco claro (sobretudo com os olhos de hoje), não se pode de todo extrair dele a conclusão peremptória de que PSD e CDS visavam a "função" e não o "território", entrando na querela confusa e absurda que, agora, se abriu por aí. Na verdade, a expressão "três mandatos sucessivos nas respectivas funções" tanto pode ter uma interpretação, como outra. Para o pouco cuidado neste texto poderão ter contribuído quer o contexto especial já acima referido (meros contributos para um debate de fundo mais alargado, que decorria), quer a circunstância de este projecto de lei remeter ainda para outra alteração específica da lei eleitoral que, essa sim, tudo determinaria (cfr. art.º 2º).

Por seu turno, o projecto do BE, que sempre perfilhou a tese mais restritiva, adopta a técnica que viria a tentar novamente em 2005 e actua, por isso, no quadro das inelegibilidades - e não apenas de uma limitação de mandatos, em sentido estrito. Por isso, propunha-se aditar um novo n.º 4 ao artigo 7º da Lei Eleitoral sobre "Inelegibilidades especiais", que diria o seguinte: «Não são elegíveis, durante um quadriénio, para os cargos de carácter executivo dos órgãos autárquicos, os cidadãos que tenham exercido esses mesmos cargos a tempo inteiro durante dois mandatos completos consecutivos, ou por um período superior a oito anos.» 

E, por último, o projecto do PS dizia: «O presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia só podem ser reeleitos até ao limite de três mandatos consecutivos, não podendo ser eleitos durante o triénio imediatamente subsequente ao termo do terceiro mandato consecutivo.» (cfr. art.º 3º, n.º1) - o uso do verbo "reeleger" indica claramente que visava impedir apenas uma reeleição, ou seja, unicamente na mesma autarquia.

Porém, a IX Legislatura nada legislaria uma vez mais nesta matéria - nem tentou sequer. A limitação de mandatos seria fixada já na X Legislatura (2005/09), por debates parlamentares que decorreram entre Maio e Julho de 2005, quando o PS detinha maioria absoluta parlamentar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Limitação de mandatos – factos e populismo

Depois do primeiro e do segundo artigos, saiu ontem no jornal PÚBLICO o terceiro artigo que escrevi a respeito da questão da limitação dos mandatos autárquicos. Um deplorável folhetim que só acabará agora com a decisão final, em breve, do Tribunal Constitucional.

É esse artigo que reproduzo aqui.


Limitação de mandatos – factos e populismo
- por José Ribeiro e Castro

Um dano já inapagável nesta querela da limitação de mandatos, que inicialmente prejudicou com inusitada rispidez a candidatura de Fernando Seara – e afecta também outros candidatos do PSD, da CDU, de coligações PSD/CDS e do PS – é não só o desgaste adicional suportado por alguns, mas o desprestígio efectivamente acumulado por todos.
A mossa não vai desaparecer. Mas a incerteza terminará em breve. Falta pouco. E muito me surpreenderá que, quando o Tribunal Constitucional houver de decidir, a final, a questão de fundo, não prevaleça o único sentido com que a lei foi discutida e aprovada: há impedimento a que o presidente se recandidate, não há impedimento a que concorra noutro município.
Porém, nunca fiando. Nunca tinha visto um porco andar de bicicleta - ultimamente, porém, isso acontece com invulgar frequência.
Pelo que conheço da lei e acompanhei do processo não tenho a mais pequena dúvida sobre o significado e o alcance da lei de limitação de mandatos que a Assembleia da República discutiu e aprovou entre Maio e Julho de 2005: um presidente de Câmara não pode ser reeleito para um quarto mandato consecutivo, mas nada impede que se candidate noutro local qualquer. No primeiro caso, é a lei que decide; no segundo, são só os cidadãos a decidirem democraticamente.
Creio, aliás, que, se o impedimento mais apertado que alguns pretendem existisse na lei, seria inconstitucional – pois consistiria, sem válida ratio legis, na limitação desproporcionada da capacidade eleitoral passiva de um cidadão, com violação também do princípio da igualdade.

O processo legislativo que ocorreu está carregado de elementos para refrescar a memória de quem se tenha esquecido e para clarificar o entendimento de quem tenha dúvidas. Vejamos apenas as curiosidades mais significativas.
Por exemplo, o CDS. O CDS absteve-se. E só não votou a favor da lei, por não concordar com a limitação de mandatos que era estendida nos mesmos termos às freguesias. Eu era Presidente do CDS na altura, fui informado dos antecedentes e definiu-se orientação. Exprimi reservas apenas quanto aos presidentes de Juntas. O grupo parlamentar concordou e é isso que consta das intervenções, incluindo declarações de voto. Mas a intervenção principal no plenário ilustra bem a posição estável do CDS, que vinha, aliás, da direcção anterior do partido, que também integrei.
Disse, no debate, o deputado do CDS: «Portanto, estamos de acordo com a limitação de mandatos para as autarquias locais [com excepção das freguesias, como assinalava a seguir], fundamentalmente porque entendemos que o primeiro mandato é, sobretudo, de planeamento de uma obra, o segundo, se o povo assim entender, de execução da obra e o terceiro de gestão dessa obra, enquanto o quarto mandato poderá ser considerado uma gestão demasiado prolongada dessa mesma obra.» Este, aliás, era um estribilho – e bem – na intervenção do CDS: 1º mandato, planear; 2º mandato, executar; 3º mandato, concluir. Quem pode duvidar de que se estava a falar sempre e só do mesmo município?
Há uma ainda mais elucidativa intervenção do PCP, que foi sempre contra a limitação legislativa dos mandatos. Às tantas, criticando a proposta de lei, disse expressamente o deputado do PCP: «Aliás, a limitação de mandatos dos órgãos executivos num determinado município em nada impede que estes venham a assumir tal responsabilidade no município vizinho.» E ninguém o contraditou! Nem podia contraditar, porque era exactamente isso que estava a ser discutido e viria a ser decidido.

A falta de rigor com que esta matéria tem sido apreciada é bem ilustrada na decisão do tribunal de 1ª instância que, em Lisboa, ainda na fase “Revolução Branca”, tomou a primeira decisão contra Fernando Seara. A decisão da Meritíssima Juíza do 1º Juízo Cível foi trabalhosa, mas tem uma falha elementar: no seu afã de coleccionar argumentos contra a candidatura, menciona em apoio dessa tese o preâmbulo da proposta de lei que tudo originou. Mas, ó tropeço dos tropeços, o texto legislativo da proposta de lei era, ele, absolutamente inequívoco, pois usava o verbo “reeleger”: “o presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia não podem ser reeleitos para um quarto mandato consecutivo” – reeleger, como é óbvio, refere-se exactamente à mesma função no mesmo local. E, portanto, se o texto normativo dizia isto, o preâmbulo só pode significar o inverso do que a Meritíssima Juíza entendeu; e a decisão devia ter sido logo precisamente ao contrário.
A direcção política do CDS, por seu turno, parece ter preferido uma linha de rigor científico. É a interpretação da lei com GPS: no Porto, a lei vale de uma maneira; já em Lisboa, vale de outra, que, por sinal, também se aplica a Aveiro e à Guarda. A lei varia com o paralelo e o meridiano.
Nem se pense que esta novíssima escola jus-geográfica ou geo-jurídica adoptada pelo CDS é estapafúrdia. A jurisprudência nacional segue-a com a mesma desenvoltura, não cessando de aplicar decisões diferentes em Lisboa, Porto, Aveiro, Évora, Guarda, Beja, Loures, Tavira, Alcácer do Sal, etc. É cada terra com seu uso…
Houve ainda aquele episódio dos “de” e “da” por que ficámos a saber como, de modo caricato, a Imprensa Nacional/Casa da Moeda se auto-investiu de poderes legislativos. Só por cá!... Esses “de” e “da” são, a meu ver, irrelevantes para a decisão do caso; mas, se fossem relevantes, o texto não poderia deixar de interpretar-se, como é óbvio, tal como foi efectivamente votado e publicado pela Assembleia da República (Decreto n.º 15/X).
É por tudo isto que já ninguém sai bem deste novelo. E há responsáveis políticos por terem sido lançadas mais pazadas de lama em cima da classe política, agravando o seu desprestígio – e também dos tribunais. O caldo populista alimentou-se mais um pouco. Foi jogo perigoso. Muito censurável.
publicado pelo jornal PÚBLICO, na edição de 20-ago-2013

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mal, mas nem tanto...

1.ª página da edição de hoje do jornal i
19 de Agosto de 2013
Continua animada a trapalhada político-judiciária da estação em torno da querela da limitação de mandatos. E nem sempre a cobertura jornalística da coisa tem ajudado ao esclarecimento da opinião pública - antes pelo contrário.

Hoje, o jornal i faz destaque de capa com o assunto, dedicando-lhe notícia desenvolvida e editorial, na linha da manchete:"a grande confusão foi discutida em apenas 3 minutos". Pois bem... Não é verdade.

Os deputados, já se sabe, têm as costas largas. Sabe sempre bem arrear-lhes nos costados. É desporto popular desancar no Parlamento. Mas, aqui, as coisas não foram bem assim, nem é dos deputados a principal responsabilidade da trapalhada que está gerada. 

Estou à vontade, pois não era deputado na altura e não tive, portanto, participação ou intervenção directa no assunto. Mas, a partir do portal da Assembleia da República, não é nada difícil reconstituir o que efectivamente se passou. Está tudo aqui, quanto ao processo legislativo da actual Lei n.º 46/2005, de 29 de Agosto

Além disso, a comunicação social dispõe de jornalistas parlamentares que seguem os debates; e devia dispor da capacidade editorial suficiente para, oito anos depois, recordar, com independência e rigor, a efectiva verdade dos factos e não se ter deixado (como deixou) instrumentalizar pelos manobrismos e tentativas de intoxicação que se intrometeram. Uma boa imprensa é sempre um excelente antídoto social contra a má-fé e a falsa arte de trampolineiros e charlatães - o que, neste caso, infelizmente não aconteceu. 

Bem sei que à época o jornal i não existia - por isso, não podia, ele, carregar essa memória editorial. Mas outros existiam; e podiam (deviam) ter ajudado, com isenção e objectividade, a recordar os factos exactos e evitar que "amnésias" selectivas e interpretações manhosas poluíssem (por interesse próprio) o debate, gerando o caos a que assistimos.

Indo à notícia de hoje:

Os "três minutos" que fazem a manchete do i, aconteceram na verdade. Mas foram os últimos três minutos de longos trabalhos e debates parlamentares - e até um luxo extra que, às vezes, muito raras vezes, é concedido no tempo da votação na especialidade e votação global final dos diplomas. Além disso, foram certamente três minutos extra por cada grupo parlamentar interveniente - e não apenas três minutos "a mata-cavalos", como a manchete e a notícia dão a entender.

Aliás, a lei teve dois dias de debate no plenário da Assembleia da República e não só esses "3-minutos-3" do último momento do segundo desses dias. Esteve em debate em plenário, primeiro, no dia 5 de Maio e, depois, nesse dia 28 de Julho.

Recapitulando o processo legislativo:
  1. A lei resultou basicamente da Proposta de Lei n.º 4/X, que entrou na Assembleia da República no dia 21 de Abril de 2005.
  2. A proposta de lei foi apreciada em conjunto com dois projectos de lei do Bloco de Esquerda (Projecto de Lei 34/X e Projecto de Lei 35/X), que versavam sobre a mesma matéria e que haviam dado entrada a 14 de Abril de 2005.
  3. Estas iniciativas baixaram logo à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que as apreciou, aprovando o respectivo relatório/parecer no dia 3 de Maio de 2005.
  4. Subiram a debate na generalidade em plenário no dia 5 de Maio de 2005. Aqui, houve abundantes intervenções: Pedro Silva Pereira (Ministro da Presidência), Francisco Louçã (BE), Nuno Magalhães (CDS-PP), António Montalvão Machado (PSD), Heloísa Apolónia (PEV), António Montalvão Machado (PSD), Jorge Coelho (PS), Luís Marques Guedes (PSD), Jorge Coelho (PS), Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP), Abílio Dias Fernandes (PCP) e Ricardo Rodrigues (PS). Quais "três minutos"!? Muito mais do que isso: bem mais de uma hora.
  5. Nesse dia, os textos foram aprovados na generalidade, recebendo apenas votos favoráveis do PS e do BE (por razões que não cabe aqui desenvolver) e baixaram de novo à comissão, agora para a especialidade.
  6. Estiveram em apreciação na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias durante cerca de dois meses e meio (quais "três minutos"!?), acabando aí por concluir-se que a votação na especialidade seria feita no próprio plenário, em vez de na comissão, uma vez que prevaleceu a tese de apresentar dois textos de substituição: um para os mandatos autárquicos, em que havia a possibilidade da maioria necessária de 2/3; e outro quanto aos mandatos do primeiro-ministro e dos presidentes de Governos Regionais, em que essa possibilidade de maioria  qualificada não existia.
  7. Esses textos só foram ultimados no próprio dia 28 de Julho de 2005 (v. imagem no fim deste post). É pena, mas não é raro que assim aconteça. Até pode ser sintoma do contrário do que se procura dar a entender: esteve-se até à última a afinar o texto final que seria votado.
  8. E, de facto, como diz a notícia do i, haveria ainda um outro texto de substituição PS/PSD apresentado já em cima da hora, com o plenário a decorrer. Não é uma prática muito saudável, é verdade. Mas este outro texto de substituição, como poderá verificar-se, tinha o único alcance de aditar que a lei só se aplicaria a partir de 1 de Janeiro de 2006, não afectando, assim, o mandato autárquico que estava em curso para o efeito da contagem dos mandatos. Recorde-se que ia haver eleições locais em Outubro desse ano. Os tais três minutos extra de debate concedidos para esta ronda final destinaram-se justamente a tornar tudo claro, antes de votar. E, de facto, assim foi.
  9. Na sessão plenária de dia 28 de Julho, procedeu-se, então, em primeiro lugar, à votação na especialidade e ao respectivo debate, em que foram concedidos e usados três minutos por cada partido interveniente. Aqui, intervieram: Luís Marques Guedes (PSD), Vitalino Canas (PS), Osvaldo de Castro (PS), Nuno Magalhães (CDS-PP), Vitalino Canas (PS), Paulo Castro Rangel (PSD), Bernardino Soares (PCP), Luís Fazenda (BE), Augusto Santos Silva (Ministro dos Assuntos Parlamentares) e Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP). Quais "três minutos"!? Muito mais do que isso, certamente perto de mais uma hora.
  10. E, nessa mesma sessão plenária de dia 28 de Julho, ainda se procedeu, em segundo lugar, à votação global final e com outro pequeno debate ex post, em que intervieram (declarações de voto orais): Vitalino Canas (PS), Luís Marques Guedes (PSD) e Nuno Magalhães (CDS-PP).
Como se vê, não foi por falta de debate parlamentar, nem por correrias de última hora que a lei ficou como ficou. 

Sem dúvida que a lei poderia ter ficado com melhor e mais clara redacção. Mas a ninguém terá ocorrido que, passados oito anos, quando a lei viesse a ser aplicada pela primeira vez, houvesse tanta "falta de memória" quanto ao que efectivamente se discutira e decidira. 

A imprensa podia ter ajudado a combater essa amnésia, cruzada com manipulação politiqueira. Infelizmente, porém, não o fez - e tem até, objectivamente, colaborado na confusão e no caos. 

Mas a responsabilidade da coisa não é obviamente da comunicação social, antes dos aprendizes de feiticeiro que semearam ventos, para a todos nos fazerem, agora, colher a tempestade. Maus dirigentes.

Sobre a matéria já escrevi um primeiro e um segundo artigos no jornal PÚBLICO. Escreverei ainda um terceiro.

Os textos de substituição apresentados
e votados no dia 28 de Julho de 2005.
Um foi aprovado; outro não.



sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A vida de cada um de nós



Há notícias simples com uma importância extraordinária. Porque, na sua simplicidade, dizem tudo. 

Esta notícia é uma dessas. Deu-nos a conhecer que, na terça-feira passada, no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, a equipa do Dr. José Fragata implantou um coração artificial a um bebé de três meses e meio. Oxalá tudo corra bem, como noutros casos muito difíceis, operados pelo mesmo médico e sua equipa, em Portugal. Foi a primeira vez que esta intervenção se realizou no nosso país numa criança tão pequena: 3 meses e 1/2!

A notícia mostra-nos como o direito à saúde de cada um de nós, desdobramento do nosso direito à vida, existe desde os nossos primeiros dias. E mostra-o, na sua maravilha, sem necessidade de mais explicações. 

Há uma vida para salvar? Há uma vida para salvar. Há uma vida para proteger? Há uma vida para proteger.

A cirurgia médica para salvar vidas, ou para corrigir deficiências ou insuficiências, já se faz mesmo antes de nascermos. Por exemplo, este caso que foi noticiado em Maio do ano passado: Para salvar seu bebé ela enfrentou uma cirurgia intra-uterina. São casos de espinha bífida/mielomeningocele, em que a cirurgia é feita a partir da 24ª semana de gestação (para o filho) ou de gravidez (para a mãe), havendo relatos e registos de várias intervenções. E há muitas outras doenças em que a actuação médica, até mais simples, sobre o bebé antes de nascer é decisiva.

O direito à saúde existe, de facto, desde os nossos primeiros dias, a partir da concepção. Tudo isto o mostra, na sua maravilha, sem necessidade de mais explicações. É uma directa decorrência da vida e do direito à vida.

Por isso é tão importante assinar e divulgar a petição ONE OF US | UM DE NÓS, uma petição transeuropeia que pretende reunir em toda a União Europeia um milhão de assinaturas para promover a protecção da vida humana desde a sua concepção na Europa e dentro das competências da União Europeia.


Visitando este portal, pode conhecer melhor a iniciativa para a divulgar junto de amigos e conhecidos. E pode assinar directamente aqui, num formulário oficial online, que fica logo registado nos serviços próprios da Comissão Europeia. 

Em 22 de Julho, já íamos em 802.408 assinaturas. Junte-se a nós! E mobilize mais gente. Cultura e civilização!

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Álvaro e Gaspar: a notícia do dia


O dia vai animado com uma notícia a que não estávamos habituados desde há vários meses: estamos a crescer. A notícia apresentou-se mesmo acima dos rumores que ontem já corriam: a variação trimestral, em cadeia, do PIB nacional foi de 1,1%! E a notícia chegou em vários tons e abundante informação:
  • Público: Portugal sai da recessão com crescimento de 1,1% no segundo trimestre.
  • Jornal de Negócios: Economia portuguesa cresce 1,1% no segundo trimestre e supera previsões.
  • jornal i: PIB português foi o que mais cresceu na UE no segundo trimestre.
  • Expresso: 'Pequeno salto' de 416,5 milhões retirou Portugal da recessão.

Por mim, sinto o dever, por estes factos, de cumprimentar e agradecer aos ex-ministros Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira o trabalho árduo que desenvolveram. 

Estes números dizem respeito ao 2º trimestre de 2013, isto é, ao período que terminou em 30 de Junho, cobrindo, portanto, o final da sua acção governativa. Vítor Gaspar retirou-se exactamente a 1 de Julho; e Álvaro Santos Pereira saiu no quadro da remodelação governamental mais ampla que encerrou a infeliz e muito perigosa "crise política de Julho" (de 2 de Julho a 24 de Julho). 

No caso de Álvaro Santos Pereira, que também detinha a pasta do Emprego, deve ainda ser-lhe  creditada a muito significativa baixa da taxa de desemprego de 17,7% para 16,4% que fora já notícia há dias atrás.

As felicitações são devidas sobretudo às empresas, aos empresários e aos trabalhadores que estão no terreno e às famílias e cidadãos portugueses que enfrentam e vencem as muitas dificuldades com coragem e estoicismo. Também é bom, porém - e necessário, - que o crédito seja atribuído àqueles sobre que se quis fazer recair descrédito: os primeiros ministros das Finanças e da Economia desta legislatura tão decisiva para Portugal. 

Os que tanto foram vergastados por números maus devem ser felicitados, na mesma medida, pelos números bons.

Nenhuma destas notícias é para deitar foguetes. A situação continua muito difícil e ainda carregada de múltiplos desafios e incertezas. O caminho do país e a tarefa do governo permanecem inalterados, muito duros e exigentes. E o governo faz bem em baixar a temperatura e arrefecer excitações despropositadas. Sobriedade e determinação devem continuar a ser nota dominante.

Mas são, sem dúvida, factos animadores: encorajam quem porfia e atraem quem duvidou. Precisávamos desses factos e bem os merecemos.

Como cidadão e como deputado, muito obrigado.

A verdadeira história da lei de limitação de mandatos

Sai na edição de hoje do jornal PÚBLICO o segundo artigo que escrevi a respeito desta deplorável trapalhada político-judiciária que alguns quiseram (e mais outros deixaram) armar em torno da limitação dos mandatos autárquicos. As notícias sucedem-se, semeando a confusão, a perplexidade e o sentimento de desordem.

Depois do primeiro, transcrevo também aqui este segundo artigo. E ainda escreverei, pelo menos, mais um.


A verdadeira história da lei de limitação de mandatos 
- por José Ribeiro e Castro

A lei de limitação de mandatos de 2005 visou impedir a eternização no lugar dos presidentes de Câmara Municipal – o que, a meu ver mal, se alargou também aos presidentes de Junta de Freguesia. Porquê? Porque esse era o problema que existia; e o problema, portanto, que importava resolver. 
Podia ter sido outro o problema, por exemplo o de impedir que os presidentes de Câmara pudessem saltitar de município em município. Mas não foi. Porquê? Porque esse problema não existia. E porque, nos poucos casos em que esse facto ocorreu, nunca merecera reprovação, nem, menos ainda, suscitara a necessidade de remédios legais que o proibissem.

O princípio constitucional é o da renovação (art.º 118º). E a renovação faz-se pelas próprias eleições: no fim do mandato, os titulares depõem os seus lugares; e, recandidatando-se, são os eleitores que decidem se querem reelegê-los ou não. Porém, casos há em que o poder e a preponderância do titular é tal que a eleição não chega – é preciso que a lei force a renovação.
A experiência internacional mostra o problema em cargos executivos personalizados, de que os exemplos típicos são os Presidentes da República e os presidentes de municípios ou, onde existam, governadores regionais ou provinciais eleitos directamente. Pensemos nos presidentes de Câmara: um município tem um poder local tão forte, gerando directa e indirectamente emprego (serviços municipais, bombeiros, misericórdias, instituições sociais, etc.), podendo multiplicar feitos e inaugurações em cima da campanha eleitoral e preponderando de tal forma na vida local (clubes, sociedades recreativas, agremiações diversas, pólos culturais, rádios e jornais locais, etc.), que a reeleição do presidente está largamente garantida. E havia, de facto, duas centenas de “dinossauros” que se eternizavam desde há décadas, alguns desde 1976 e um de antes. 
A Lei n.º 46/2005, de 29 de Agosto, foi feita para pôr cobro a isto – e apenas a isto. Toda a gente o sabe.

Para a lei ter o significado que a leitura mais radical e restritiva pretende, não seria uma lei de limitação de mandatos, mas uma lei de inelegibilidades. Se quisesse impedir que quem tenha sido presidente de Câmara em doze anos continuados (até em municípios diferentes) não pudesse ser candidato uma quarta vez em qualquer município, a lei declararia inelegível uma quarta vez quem das três vezes anteriores já tivesse exercido o cargo. Ora, não é isso que a lei faz. 
A lei escolheu a técnica da limitação de mandatos porque tinha o exacto propósito da limitação de mandatos em sentido próprio: quis limitar a três o número de mandatos consecutivos no mesmo lugar e impedir a reeleição consecutiva para além disso.
Por sinal, o Bloco de Esquerda pretendeu exactamente a outra regra. E nessa medida é que eu digo que, se a seriedade se servisse à meia-dose, a contestação que o BE mantém é a única que é “meio séria”: o BE sempre defendeu essa ideia – que, porém, não fez vencimento. 
O projecto do Bloco dizia claramente: “não são elegíveis durante um quadriénio” – ou seja, estabelecia uma inelegibilidade geral, que seria também inelegibilidade para vereador e decorreria de apenas dois períodos de exercício (oito anos). Mas, pormenor fundamental e decisivo, o projecto do Bloco foi rejeitado! E o processo legislativo seguiu somente com base na proposta de lei, que tinha a outra linha: pura limitação de mandatos, proibição de reeleição.

Para entender o processo legislativo, é preciso ter presente que o PS – então com maioria absoluta – decidiu poluir o debate parlamentar com a introdução em simultâneo de uma limitação de mandatos dos presidentes de Governos Regionais e, em paralelo, do primeiro-ministro. Foi por isso que, vindo da legislatura de 2002/05 (em que ocorreu a revisão constitucional que o permitiu) um certo consenso para limitar a três os mandatos autárquicos, o debate se entornou outra vez entre PS e PSD numa lei que teria que ser aprovada por maioria de dois terços: o PSD só aceitava a limitação dos mandatos autárquicos.
É esse contexto que explica que, na generalidade, a proposta de lei só recebesse os votos favoráveis de PS e BE, com votos contra de PSD e PCP, abstendo-se CDS e PEV. E, na votação final global, a proposta de lei teve de ser desbobrada em dois textos de substituição materialmente distintos, de que um foi aprovado com a maioria de dois terços (os mandatos autárquicos) e outro não (os outros cargos). Foi também esse quadro de semi-conflito e de necessidade de desagregação do texto legislativo inicial que gerou mudanças de redacção, ficando o texto final menos claro, mas ainda assim bem inteligível.
A lei fala em “três mandatos consecutivos” e tanto aquilo que é um mandato autárquico (uma função estritamente territorial), como o conceito de consecutividade evidenciam não haver o menor impedimento legal a que um presidente de Câmara se candidate noutro local, buscando não já uma reeleição, mas uma primeira eleição: não é o mesmo mandato, nem é facto consecutivo – não é “sucessivo”, “seguido”, “ininterrupto”, “contínuo”, “continuado”. 
Por estas e outras mais é que formei a ideia de que quem participou ou acompanhou o processo legislativo de 2005 só por má-fé, por crónica distracção, por interesse político enviesado, por calculismo partidocrático ou por um ataque fulminante de Alzheimer pode fingir que não sabe e colaborar na cruzada militante de dúvida que por aí foi armada.
publicado pelo jornal PÚBLICO, na edição de 14-ago-2013

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A trapalhada dos mandatos

Continua animada a chuva de contradições na trapalhada político-judiciária que se armou em torno do tema da "limitação de mandatos". Era bem expectável.

Hoje, surgem mais notícias (notícia 1 e notícia 2) prolongando a confusão e a perplexidade. E o festival, que vem de trás, vai prosseguir.

No passado dia 8 de Agosto, quinta-feira, publiquei, no jornal PÚBLICO, um primeiro artigo sobre este tema, que é oportuno hoje recordar, face ao noticiário contínuo. Voltarei a escrever, neste mês, mais artigos para procurar ajudar a esclarecer o tema e dar a minha opinião sobre mais este deplorável episódio da nossa chamada "política".


A trapalhada dos mandatos
- por José Ribeiro e Castro


Há responsáveis políticos pela incerteza que rodeia a candidatura de Fernando Seara à Câmara Municipal de Lisboa, bem como outras similares, e pelo folhetim político-judiciário que as tem perseguido.
Os primeiros responsáveis são os sectores do PSD portuense e a direcção do CDS, com sectores do CDS-PP portuense, que iniciaram, há mais de um ano, uma cruzada de dúvidas militantes sobre a lei vigente. E os segundos são as direcções nacionais do PSD e do CDS que, havendo dúvidas, nada fizeram para esclarecer sem margem para dúvidas o sentido da lei. Se acrescentarmos que também ficou pelo caminho a anunciada revisão da lei eleitoral autárquica, reunimos um vistoso pacote de fracasso político da coligação. Se recordarmos que, quanto a esta revisão, já havia um consenso fundamental PSD/CDS em Dezembro de 2004, o fracasso afigura-se ainda mais estrondoso nove anos depois. E, se, na questão específica da limitação de mandatos, tivermos presente a falta também da direcção do PS quanto à conveniente clarificação da lei, que foi de iniciativa do Governo PS (Sócrates), fica completo o quadro de irresponsabilidade geral do regime - um quadro de que já não é possível alguém conseguir escapar inteiramente ileso. Há porcarias assim.

Somos um país de pouca memória. As pessoas esquecem-se. Somos de pouca atenção. O cidadão comum não cuida da exactidão. E somos de pouco rigor. Abundam os que se fincam em opiniões definitivas sem estudarem sequer os assuntos. E, normalmente teimosos, nunca dão o braço a torcer, nem corrigem o erro. Ninguém se engana - só os outros.
Isso também aconteceu aqui. Haviam passado quase oito anos. E muita gente não se lembrava, outra não sabia sequer, o que tinha sido discutido e decidido em 2005. O clima estava aberto para um novo debate.
E, de facto, o que foi aberto foi um novo debate: não já sobre a limitação de mandatos, mas sobre se é ético ou não é ético, sobre se está certo ou está errado, que um presidente de câmara que já não pode concorrer mais no município a que presidiu se apresente noutro município e aí possa iniciar uma nova carreira. É legítimo, mas é outro debate. E, aqui também, as opiniões dividem-se: há quem ache mal; há quem não veja mal nisso; e há quem ache bem.
Só que a dúvida militante lançada sobre a lei infectou também este outro debate. Poderia ser que se considerasse não haver impedimento legal, mas como, com excepções, decidiu o PS, se entendesse não candidatar ninguém nessas condições. Mas não! O debate foi incendiado - como era, aliás, o propósito inicial: ilegitimar, intimidar e desqualificar quem se candidatasse nesse quadro. Sobretudo se fosse no Porto. Mas a Revolução Branca ampliou ainda a contestação. Foi isso que gerou o espectáculo político-judiciário deplorável a que temos assistido desde há meses.


A dúvida que foi aberta correspondeu a uma amnésia selectiva destinada a afectar a candidatura de Luís Filipe Meneses à Câmara Municipal do Porto.
Quem participou e acompanhou o processo legislativo da limitação de mandatos em 2005 não pode seriamente ter a mais pequena dúvida sobre o sentido da lei. Todavia, porque a lei não ficou com a redacção mais feliz, a dúvida era jogo possível ao aplicar a lei pela primeira vez oito anos depois. Num país de jogadores e de fraca memória, quis-se lançar a cruzada da dúvida, com um propósito: condicionar a decisão do PSD quanto ao Porto e bloquear, à cautela, a candidatura de Meneses. 
Mas a dúvida, uma vez aberta, é geral e empestou o debate. Contaminou todo o processo e gerou um caos político-judiciário de que já ninguém se sairá bem: saem mal os deputados, que deviam ter esclarecido; saem mal as direcções partidárias, que deviam ter ordenado o esclarecimento; saem pior os que estão ora de um lado, ora de outro, como o CDS; saem mal (e atingidos) alguns candidatos tratados de "ilegítimos"; saem mal os tribunais que uns decidem num sentido, outros noutro. Sai mal a política que não presta, sai mal a justiça que não há. Sai mal a República, sai mal a democracia. Sai mal o Estado de direito. Se isto não é governar mal, o que é governar mal?


Fizeram-se correr rios de tinta sobre uma sofisticada dúvida cruciante que se inventou: o limite de mandatos é referido à "função" ou ao "território"? Mas isto, salvo o devido respeito, é juridicamente uma estupidez, pois, num presidente de câmara, não há separação possível entre função e território - a sua função é toda ela territorial. E, por conseguinte, o mandato também: é territorial. O mandato do presidente da Câmara de Óbidos não é o mandato do presidente da Câmara das Caldas da Rainha, como o de Fronteira não é o de Avis, nem o de Lagos o de Portimão. Esses mandatos não se podem somar, assim como não somamos peras e maçãs: são coisas diferentes.
A lei de limitação de mandatos só limita obviamente o mandato onde o cargo foi consecutivamente exercido e se esgotou o número de reeleições que o legislador permite.
Mas não é só por isso que a dúvida lançada não é pertinente. É que, quando um candidato muda de autarquia, cessa a ratio legis, porque o autarca não carrega consigo aqueles factores de condicionamento da escolha livre dos eleitores que o legislador quis apartar: o candidato não faz inaugurações noutra terra, não prepondera no emprego noutro local, não condiciona a vida associativa a partir do poder. Claro que pode ter mais notoriedade; mas isso também o Cristiano Ronaldo e não é por causa disso que o impedimos de ser candidato.
Aliás, diversamente do que por aí se ouve com leviandade, a lei mostra absoluta eficácia na eliminação dos "dinossauros" como era seu propósito. Dos quase 200 que existiam no mandato 2009/13, não mais de 15 presidentes tentarão nova eleição noutro local. E, destes 15, se metade vencer e começar nova contagem, será muito. Se isto não é renovação, hão-de-me explicar o que é renovação.
publicado pelo jornal PÚBLICO, na edição de 8-ago-2013


domingo, 4 de agosto de 2013

Quem precisa da oposição?

Excerto do original em wehavekaosinthegarden

Com os violentos ataques de Luís Marques Mendes lançados contra o secretário de Estado do Tesouro, quem precisa da oposição? [Os ataques foram atirados ontem na SIC e são hoje reproduzidos em contínuo pela TSF. Marques Mendes é conselheiro de Estado.]

Com os violentos ataques de António Capucho lançados contra o mesmo secretário de Estado e ampliados a toda a equipa do Ministério das Finanças, quem precisa da oposição? [Os ataques são já de hoje de manhã e estão a ser repetidos em contínuo pela TSF. António Capucho foi conselheiro de Estado até há pouco.]

João Semedo e Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e António José Seguro podem ir descansados para férias. A função está devidamente assegurada e bem entregue.

O que vale ao país é o PSD ser este partido total: faz governo e faz oposição.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sofismar ou reformar

 

Hoje, o jornalista Bruno  Proença publica um interessante artigo no Diário Económico : Como Portas quer reformar o Estado. Resultará? 

A análise não é nova. Pelo contrário, actualiza um dilema que já tem meses. E, até na comparação inicial que o articulista faz com António José Seguro, o problema fica bem claro, independentemente das intenções. 

Toda a reflexão do texto o que evidencia são sofismas - sofismas bem conhecidos, aliás. Ora, sofismar não é reformar. E já vão dois anos... 

Desde o princípio do ano, vão sete meses; e desde o início do Governo, dois anos. 

Consulta, participação, diálogo, decisão, acção - é do que precisamos. 

Quem é Costa Pina? O majestoso legado do costa-pinismo.

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Não é suficientemente conhecido o legado do ex-secretário de Estado do Tesouro, Costa Pina, que ultimamente tem andado muito na comunicação social por causa do inquérito aos chamados swaps. E, não sendo suficientemente conhecido, não pode ser devidamente apreciado.

O nosso colega blogue 4R - Quarta República, numa verdadeira missão de serviço público, Foi analisando nalguns dos seus posts a genialidade do desempenho de tão preclaro governante, assim a registando para a posteridade.

E a injustiça da discrição e do anonimato pode começar, assim, a ser reparada.

Façamos silêncio diante deste outro inesquecível legado socrático:
Como dizia o outro: Ditosa Patria que taes filhos tem!!!

ACTUALIZAÇÃO (3 de Agosto de 2013): A última edição do EXPRESSO revela mais uma admirável proeza do costa-pinismo, que a SIC-Notícias prontamente levou ao conhecimento do mundo.
A este respeito, porém, Costa Pina emitiu o seguinte esclarecimento, também publicado no EXPRESSO.


Revolução Amarela




A questão da limitação de mandatos tornou-se, como era evidente, um caso sério em cima das eleições autárquicas. Lançada que foi a dúvida, o movimento "Revolução Branca" generalizou legitimamente a contestação. A culpa não é sua. E há opiniões e decisões preliminares para todos os gostos. 

Muita gente fez-se de esquecida. E ainda mais gente fala do que não sabe, nem sequer foi estudar. Cruzaram-se dois debates diferentes: o real e o imaginário. Mas os sábios falam de alto e sempre com posições definitivas. Há-os também, como no futebol, a saber de tudo sem conhecer, alguns até sem ler. A confusão instalada na opinião pública é enorme, pois quase ninguém sabe o que realmente se discutiu (e decidiu) em 2005, quando a lei foi votada.

Ao facto não é alheio o profundo desprestígio dos políticos e da classe política. Desprestígio e impopularidade que a dúvida lançada de modo insidioso só veio agravar ainda mais.

Salvo erro ou omissão, os "réus" são doze: Vítor Proença (PCP/PEV - Alcácer do Sal), Ribau Esteves (PSD/CDS - Aveiro), João Rocha (PCP/PEV - Beja), Pulido Valente (PS - Beja), Francisco Amaral (PSD - Castro Marim), Pedro Lancha (PSD - Estremoz),  Pinto de Sá (PCP/PEV - Évora), Álvaro Amaro (PSD/CDS - Guarda), Fernando Seara (PSD/CDS/MPT - Lisboa), Fernando Costa (PSD - Loures), Luís Filipe Meneses (PSD/MPT/PPM - Porto) e José Estevens (PSD - Tavira).

Contra estes - e a classe política em geral - multiplicaram-se as acusações de “oportunismo”, de “golpada” – quando efectivamente a golpada é, ao contrário, procurar bloquear candidaturas democráticas na secretaria –, de “carreirismo”, de que “os políticos arranjam sempre forma de escapar às leis”, etc.

O caldo populista que tem vindo a ser cozinhado, e que a crise económica e social agravou, facilita as coisas mais absurdas e extravagantes.

Se eu, por exemplo, apresentasse um projecto de lei a defender que, pelo sim, pelo não, um deputado deveria ser preso ao fim de quatro anos, seria certamente levado em ombros, incensado em muitas manchetes e gabado como um exemplo de “isto sim, é um político sério!” O motivo dessa medida legislativa seria óbvio, sem necessidade de o dizer: “ao fim de quatro anos – pensam os deuses do populismo – um deputado ou já se encheu o suficiente, ou já fez mal que chegue. Pelo sim, pelo não vai dentro!”

Quem desdenharia apoiar ou dar palco e megafone a uma tal causa da Revolução Amarela ou similar?