sábado, 14 de abril de 2012

Guiné-Bissau: desarmamento, JÁ!

Carlos Gomes Júnior, o primeiro-ministro da Guiné-Bissau e candidato presidencial,
preso pelos militares insurrectos e cujo paradeiro é desconhecido

Defendo que a comunidade internacional defina e faça adoptar para Guiné-Bissau um plano de desarmamento completo dos seus militares. Chega de meias-palavras e de meias-medidas. A Guiné-Bissau não está sob nenhuma ameaça externa; a única ameaça é interna. A única ameaça é constituída por militares que, agindo não como uma força nacional, mas como bando armado, desde há demasiados anos que fizeram refém as instituições do país e capturam, de modo recorrente, o presente e o futuro da Guiné e dos guineenses. 

Hoje, o director do DIÁRIO DE NOTÍCIAS tem palavras fortes a respeito dos últimos acontecimentos na Guiné-Bissau. Escreve, em Editorial, João Marcelino:
«Mais um golpe na Guiné-Bissau. Já se perdeu a conta aos golpes militares nesta antiga colónia portuguesa. Mortes muitas, e entre elas as dos líderes Nino Vieira e Ansumane Mané. Cavaco Silva, em nome do Estado português, mais uma vez, condenou "energicamente". Coisa estéril. O que os guineenses certamente apreciariam é que Portugal, atual membro do Conselho das Nações Unidas, utilizasse a sua posição para denunciar internacionalmente as causas do drama guineense: o País tornou-se uma plataforma de distribuição de droga entre a América Latina e a Europa. É este miserável negócio que alimenta ambições, distribui dinheiro, fabrica golpes, mata pessoas e não deixa espaço para a Liberdade e a Democracia. Se os políticos portugueses não querem assumir a verdade, ao menos calem-se com os lugares-comuns.»
João Marcelino está carregado de razão. A comunidade internacional, Portugal incluído, tem sido demasiado branda e contida nos pronunciamentos e medidas a respeito da Guiné-Bissau. Essa brandura tem responsabilidades cúmplices no arrastamento - e agravamento - contínuo de um quadro  político e militar absolutamente intolerável.

Desde há demasiados anos que, na Guiné-Bissau, reina um clima político de crime e impunidade, com demasiada complacência internacional. Essa complacência é inspirada por sussurradas "boas razões": o receio de que agir conduza a ainda pior e a convicção de que a paciência e a tolerância permitam paulatinamente a alteração da relação de forças ou mesmo a reconversão dos "bandidos". Os factos têm mostrado que não.

Acompanhei de perto os acontecimentos do golpe anterior a este - na Guiné, desde há largos anos que há sempre um golpe anterior e um golpe seguinte... Esse "golpe anterior" ocorreu em 1 de Abril de 2010 - e o "golpe seguinte", que está a acontecer agora, é ainda um efeito remoto e arrastado desse de 2010. 

No começo de 2010, a Guiné-Bissau parecia, finalmente, poder vir a estabilizar-se numa boa fase, depois de graves incidentes anteriores, com os assassinatos de Nino Vieira e de Tagmé Na Waié, um à catanada, outro à bomba. (Ah! Para não me esquecer... Os responsáveis destes crimes nunca foram encontrados, denunciados, nem levados perante a Justiça. A intriga política também se alimenta desse vazio judiciário.)

Tinha havido eleições presidenciais e legislativas: Malam Bacai Sanhá era o novo Presidente da República e Carlos Gomes Júnior assumira a chefia do Governo. Apesar das conhecidas diferenças e contradições entre ambos, o primeiro-ministro Gomes Júnior começara a conduzir uma boa governação, conseguindo a estabilização de pagamentos e o restabelecimento de alguma respeitabilidade internacional. O povo apreciava o seu governo. Malam Bacai Sanhá e Carlos Gomes Júnior fizeram visitas oficiais a Portugal em Fevereiro e Março de 2010. Reuniram a alto nível. Inspiraram declarações promissoras. Tudo parecia rolar sobre rodas. Até que, a 1 de Abril, tudo desabou outra vez...

Na altura, eu era Presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia da República e pude acompanhar, não na primeira fila, mas na segunda, aquilo que se seguiu: os segredos, a prudência, os compromissos embrulhados, o receio de agir forte, o medo de represálias locais mais violentas sobre os detidos ou sobre as próprias instituições da Guiné, as tergiversações, a esperança de que "o tempo sara tudo", as manobras de circumnavegação em torno do problema real, as tentativas de cerco e contra-cerco aos diferentes actores - enfim, o caldo complicado da política internacional à volta da Guiné-Bissau, que se foi acumulando ao fim de vários anos de indiferença e tibieza, de hesitação e laboriosa "engenharia político-diplomática".

Apenas nestes dois anos, sem necessidade de ir mais atrás, aquilo que se passou então e de então para cá daria um best-seller e um filme que seria certamente blockbuster: êxito de livraria e êxito na bilheteira. Tem os ingredientes todos: golpes e contra-golpes, espionagem, suspense, intriga política, narcotráfico, envolvimento criminoso, corrupção, tortura e violência, aventura, conspiração, chefes que sobem e chefes que logo caem, militares e bandidos, diplomatas e espiões, alta política internacional, coragem e medo, esperança e desilusão.

Em Abril de 2010, um chefe militar, António Indjai, prendeu outro, Zamora Induta, que era o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). Prendeu também um chefe das informações, Samba Djaló. Ameaçou prender o primeiro-ministro, Gomes Júnior, mas acabou por recuar, face à reacção popular e internacional. Os insurrectos agiram coordenados com outro chefe militar anterior, Bubo Na Tchuto, que fugira da Guiné por envolvimento noutro "golpe tresanterior", mas regressara, entretanto, clandestinamente, refugiando-se (onde? pasme-se...) na representação das Nações Unidas em Bissau. Os golpistas de Indjai libertam Na Tchuto, que passa a agir a claro. Induta e Djaló são maltratados no presídio militar, consta que várias vezes torturados. Receia-se pela sua vida, ao longo de longos meses. 

A intriga constante entre Presidente da República e Primeiro-Ministro voa altíssima, com grande envolvente internacional. Bacai Sanhá viaja várias vezes ao estrangeiro, antes de cair gravemente doente - viria a falecer já em 2012, o que desencadeia as eleições presidenciais que decorriam agora e de que a segunda volta estava marcada para fim deste mês de Abril.

Indjai queria ser o novo CEMGFA. O mundo diz que não. O mundo exige a protecção da vida e a libertação imediata de Zamora Induta e Samba Djaló, bem como a reposição da ordem institucional normal, isto é, Induta como CEMGFA. O mundo interroga-se também pela impunidade e liberdade de movimentos de Bubo Na Tchuto, que, com outro alto responsável militar guineense, é formalmente indiciado pelas autoridades norte-americanas de participação no narcotráfico. O mundo diz que "Indjai e Na Tchuto de maneira nenhuma!" 

Mas o mundo não agiu. E foi falando cada vez mais pianinho...  Malam Bacai Sanhá, o Presidente da República, que não gostava de Zamora Induta, nem de Carlos Gomes Júnior, foi manobrando. Indjai, o golpista, acaba a tomar posse como CEMGFA, assumindo o posto do Induta que prendeu - e ao que consta, fez torturar. E o próprio Na Tchuto, o narcotraficante, acaba recolocado como CEMA (Chefe do Estado-Maior da Armada).

O mundo, cedendo em toda a linha, achou que, assim, comprava a estabilização político-militar na Guiné-Bissau. Viu-se... Está a ver-se.

Bubo Na Tchuto, o almirante do narcotráfico e CEMA, acabou por ser novamente preso por envolvimento noutro golpe ou pseudo-golpe, ainda em vida de Bacai Sanhá, e queixa-se das suas condições prisionais, por entre declarações de anedotário, comparando-se a Mandela. Zamora Induta e Samba Djaló que, entretanto, depois de várias peripécias, haviam sido libertados do presídio de Indjai não tiveram boa sorte: Djaló acabou assassinado há poucas semanas; Induta teve que buscar refúgio receando pela sua vida e segurança.

Entretanto, Angola, que assumira a presidência da CPLP, foi convencida a assumir as dores da estabilização militar guineense, com laborioso apoio político-diplomático de Nações Unidas, União Africana, CEDEAO, CPLP e União Europeia. Embrenha-se numa missão de reestruturação militar da Guiné-Bissau, através da MISSANG. A missão tropeça nos obstáculos do costume, dias antes deste último golpe, e ambos os factos estão estreitamente ligados na poderosa intriga local. Carlos Gomes Júnior, primeiro-ministro e líder destacado da 1ª volta das eleições presidenciais, e Raimundo Pereira, presidente da Assembleia Nacional e Presidente da República interino, são detidos e levados para local incerto. É dito que Indjai também está detido, mas dá para desconfiar que esteja por detrás deste golpe.

Em resumo: quem são os verdadeiros reféns destes militares guineenses? Zamora Induta e Samba Djaló em 2010? Carlos Gomes Júnior e Raimundo Pereira, hoje? Não. Reféns são as instituições locais. Refém é o povo da Guiné-Bissau. Refém é a comunidade internacional.

Hoje, reúne a CPLP em Lisboa. E as Nações Unidas parecem também falar grosso. Que não lhes doam as decisões. O povo da Guiné-Bissau precisa de ordem. Os guineenses querem ordem para poderem ter paz e progresso.

A comunidade internacional não pode continuar a agir como estando cativa destes militares. A comunidade internacional não pode continuar a abandonar a caprichos e desmandos militares, o povo da Guiné-Bissau, privado da democracia que pratica e quer praticar, mas vê sistematicamente assaltada por bandos armados.


Para falar curto e grosso, a comunidade internacional tem medo, age tolhida pelo medo. Pois bem: tem que deixar de ter medo.


A Guiné-Bissau não está sob qualquer ameaça externa; a ameaça é interna. Estes militares da Guiné-Bissau não são uma garantia de ordem - tornaram-se no principal factor da desordem. Importa deliberar, no imediato, e executar acções efectivas para o seu desarmamento. Importa proteger e reforçar o poder das autoridades civis e democráticas; reforçar a polícia e a Justiça, combatendo o narcotráfico e outras associações criminosas; garantir o futuro pessoal dos soldados e oficiais, mas, no quadro e para o efeito de uma reorganização e reconstrução das Forças Armadas guineenses.

É preciso pôr termo de vez a este ciclo infernal de crime e impunidade, cedência e recaída. A Guiné-Bissau precisa de paz e liberdade, ordem e progresso.

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