terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Lembrando a Restauração


Porque há quem se esquece ou quer esquecer, aqui deixamos uma memória do que foi a Restauração, na palavra de José Hermano Saraiva.


Acabar com a festa de Portugal? Acabar com a festa da Independência? Não pode ser.

[Fonte das imagens: blogue Zé Povinho]


Em defesa do 1º de Dezembro


Tendo-nos sido enviado por correio electrónico, publicamos aqui um artigo da autoria do Tenente-Coronel Piloto-Aviador, João José Brandão Ferreira, que traduz a posição do seu autor.


EM DEFESA DO 1º DE DEZEMBRO
19-Nov.-2011

“Perdoai-lhes, Senhor ,
que eles 
não sabem o que fazem!”
Jesus Cristo


A questão da diminuição dos feriados e, ou, de os encostar aos fins-de-semana é recorrente na política portuguesa das últimas três décadas. Compreende-se: à falta de coragem e saber para atacar as causas dos problemas, ficam-se pelos efeitos…

Todavia, a desculpa da “Troika” pode levar, desta vez, a que se faça mais alguma asneira.

Apesar de ser uma intromissão directa no movimento de translação da Terra, ainda aceito a hipótese de se encostar os feriados a um sábado ou domingo, embora me pareça óbvio que isso não possa ser feito com alguns deles. Por exemplo não faz qualquer sentido mudar o dia em que nasceu o Deus Menino.

Agora acabar com feriados só por motivos ponderosos ligados à sua não justificação.

Para o que estamos a tratar existem dois “campeonatos”: os feriados civis e os religiosos.

No âmbito religioso cremos que a Conferência Episcopal se precipitou ao condescender em não se opor a que se deixe cair dois feriados católicos – considerados menos importantes – desde que o governo também pusesse fim a dois feriados “civis”.

A decisão e seu anúncio público pode ser politicamente correcta, mas não deixa de ser errada e, se quisermos, algo demagógica. Por uma simples razão: em termos religiosos não deve haver hierarquização nos feriados. Alguém se atreverá a dizer o que é mais importante se o Natal ou a Páscoa? E, já agora, porque dois e não três?

Aqui deve ser o tudo ou nada. Os feriados católicos são uma “prenda” que os não católicos auferem – muitos deles sem o merecerem, pois nem sequer respeito lhes têm. Os feriados só deixariam de se justificar (e mesmo assim tenho dúvidas), se a maioria da população – já que tudo se mede em termos “democráticos” – deixasse de ser católica!

Esperemos pois, que a Santa Sé, caso venha a haver negociações, vá arrastando as mesmas até as deixar cair. Ou então que lhes ponha um ponto final à cabeça.

Quanto aos feriados civis existem dois que, de modo algum, devem ser tocados: o 10 de Junho e o 1º de Dezembro.

O Dr. Mário Soares já veio defender que deveriam ser o 5 de Outubro e o 25 de Abril, mas como raramente acerta em algo, desta vez também está errado!

Aliás, qualquer mente menos atenta poderia pensar, que para um “socialista”, ainda por cima antigo militante comunista, o feriado mais importante seria o 1º de Maio – este sim de justificação mais do que questionável, pois nada o liga a algum evento da vida nacional.

Mas para isso seria necessário olvidar que o senhor há muito meteu o socialismo na gaveta – como passou a ser “vox populi” – se é que semelhante doutrina gozou nele, alguma vez, de qualquer consistência. Por isso o que lhe veio à mente – até porque (ainda) não foi tocado pela graça da Fé – foi o 5/10 e o 25/4. O primeiro porque lhe recorda as suas raízes republicanas, meio afrancesadas, meio maçónicas; o segundo por lhe ter proporcionado carta de alforria.

O País, a Nação Portuguesa, como um todo, não se revê, porém, em nenhuma destas datas, já que elas são marcadas por cisões profundas, ideológicas e de sistema ou regime político, entre a família portuguesa. E quanto ao “activo” versus o “passivo”de uma e de outra é assunto controverso que a História ainda não apurou devidamente. Mas há-de apurar.

O Professor Salazar teve o bom senso e a mestria política de nunca deixar fazer do 28 de Maio (de 1926), feriado nacional. Mas para o Dr. Soares perceber isto era preciso que lhe chegasse aos calcanhares. E não chega.

O que é mais engraçado em toda esta questão inútil, é o facto de se estar, aparentemente, preocupado em não perder horas de trabalho e ninguém se lembrar de acabar com o feriado (deixo de fora o 1º de Janeiro, dado que esse é simultaneamente um feriado civil, religioso e quase universal), da terça feira de Carnaval, já que esse não celebra nada de especial e apenas se destina à folgança. Mas talvez estejam lembrados do que aconteceu, a um Primeiro-ministro chamado Aníbal, que há uns anos teve uns dissabores por muito menos…

Resta pois, o 10/6 e o 1/12 como datas de efemérides verdadeira e genuinamente nacionais onde se comemora a nossa existência como país soberano e independente. Ou seja, a nossa razão de existência.

E, aqui, já faz lógica que muitos queiram acabar com um deles (o outro virá a seguir): a existência de Portugal não lhes interessa, por isso têm defendido “iberismos “ e “federalismos”- que é para onde querem levar os países europeus com o actual esticar de corda financeiro. Nem se importam de vender a alma ao diabo se tal garantir o seu bem - estar pessoal.

Passará pela cabeça de alguém que o governo dos EUA – o país mais capitalista do mundo – irá alguma vez propor que o feriado do 4 de Julho seja extinto, para aumentar a produção?

Caros leitores, a produtividade não está ligado a feriados. A produtividade está ligada, em primeiro lugar, às leis do trabalho e ao funcionamento célere e adequado da Justiça; depois à formação dos trabalhadores e empresários, à organização do trabalho e à estrutura das empresas; finalmente, e mais importante de tudo, à capacidade de liderança nos diferentes escalões da gestão. E quanto mais se sobe na hierarquia – uma palavra maldita hoje em dia – mais isso é importante.

É nestas áreas que é preciso apostar – e há sempre coisas a melhorar – e não andar a perder tempo e a chatear a cabeça às pessoas com ridicularias que só servem para as desmotivar… de trabalhar.

Nos feriados, aliás, muita gente trabalha e nada impede que quem o queira o possa fazer.

Por tudo isto e os desaguisados que, fatalmente, trará, é possível que não seja desta, ainda, que os tecnocratas sem alma e sem sensibilidade, seja para o que for, consigam cortar nos feriados.

Acho até que, sobretudo nos órgãos de soberania, deveria haver muita gente que devia trabalhar bastante menos. Não se fariam tantos disparates.

João José Brandão Ferreira
TCorPilAv. (Ref.) 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Dia Nacional no Código do Trabalho!?


Nesta coisa do debate dos feriados, começa por fazer confusão o facto de a questão ser tratada como matéria do Código de Trabalho. Então, saber se celebramos, ou não, o 1º de Dezembro é matéria da lei laboral? Se assinalamos, ou não, a Independência Nacional é questão para a Concertação Social? O Dia Nacional ou os Dias Nacionais são assunto para se discutir entre relógios de ponto e compensações negociais?

Este é o primeiro grande equívoco do debate e da forma enviesada como os partidos o (não) têm tratado. Uma coisa são as datas nacionais e a sua hierarquia de importância, o mesmo se dizendo das festas religiosas e das municipais. Outra coisa, bem diferente, é o conjunto de efeitos que associamos à sua celebração e como fazemos a celebração. Por isso, fazem sentido as observações (incluindo as implícitas) do artigo de ontem de Paulo Baldaia. E, por isso também, o que teria sido sensato é que a maioria tivesse retomado o fio da meada do projecto de Resolução nº 136/XI das duas ex-deputadas independentes do PS.

Uma coisa é celebrar ou não celebrar uma determinada data como Dia Nacional, festa religiosa ou dia do Município. Outra coisa é deslocar o descanso para a segunda-feira (eliminando pontes) ou para o fim-de-semana (eliminando o dia feriado). Só em conjunto e depois de conhecer bem os objectivos do Governo é que poderia decidir-se bem, articulando todos os modos de agir e conseguindo os ganhos de produtividade pretendidos: acabar com o número excessivo (e desordenado) de quebras de produção ao longo do ano.

Pode (e deve) fazer-se, preservando sempre as datas mais importantes, que têm fundamental carga simbólica. De que o 1º de Dezembro, a festa da independência nacional, é uma das principais. Aliás, a principal! Se não fôssemos independentes, não celebraríamos nenhum dos nossos feriados - antes os de outros.

Se um crime incomoda muita gente, dois crimes incomodam muito mais


O inesquecível Maxwell Smart, o agente 86 do CONTROL,
na série "Get Smart", implacável inimigo das forças do mal do KAOS

Já quase tudo foi escrito sobre o caso do eventual "uso privado" de informações do SIED, por parte do seu antigo director Jorge Silva Carvalho, e do acesso a registos telefónicos do jornalista Nuno Simas. Mas, como de costume entre nós, já quase tudo foi dito e escrito, mas nada foi exactamente apurado e estabelecido. Andou-se de restolhada em restolhada... até ao silenciamento total? 

As últimas resstolhadas  foram à volta dos pseudo-relatórios da 1ª comissão parlamentar e sobre uma rodada geral da maçonaria, folhetins com que abriu o ano de 2012. Muito ruído, pouca conclusão. O que, para já, existe pode ler-se aqui. À portuguesa, para já, "muita parra, pouca uva". Dir-se-ia até que o propósito das restolhadas de indignação será o de deixar tudo na mesma. Conversa puxa conversa, "indignação" a rodo, mas... conclusões e acções nenhumas.

O eventual crime de que se falou merece ser apurado e tem que ser esclarecido: houve ou não houve? Houve ilícito ou não? Houve irregularidades e quais? São de natureza criminal, disciplinar ou outra? Ou foi  tudo ruído e inimizades de outra ordem?

Porém, enquanto se fala (e nada se apura) deste eventual crime, outros se vão cometendo todos os dias diante dos nossos olhos, em ligação com o mesmo caso. Foram apreendidos equipamentos pessoais a Jorge Silva Carvalho e, com base nisso, desatou-se a violar a privacidade dos registos aí guardados e a servi-los publicamente no chavascal populista que é do estilo, com descarada quebra do segredo de justiça.

A investigação de um crime, não apurado, conduziu ao cometimento continuado de dois crimes graves diante dos nossos olhos. Não sabemos se Silva Carvalho alimentou, ou não, ilegalmente a Ongoing. Mas já sabemos que, com origem na própria polícia ou na própria Justiça, os seus registos e arquivos pessoais alimentam ilegalmente o pasto público. Não é uma história juvenil de "polícias e ladrões". É antes uma história adulta de "polícias-ladrões".

Há muitos anos que sustento que este tipo de promiscuidade entre polícias (ou magistrados) e jornalistas é uma das maiores ameaças às liberdades fundamentais e aos direitos e garantias dos cidadãos. Primeiro, põe jornalistas a servir agendas que não são suas. E, depois, ameaça o bem mais precioso de um qualquer cidadão, começando pelos jornalistas: a própria liberdade. Já disse: eu, se fosse jornalista, tinha medo do futuro - na minha vida, já vi muito aprendiz de feiticeiro...

É, para mais, uma prática vergonhosa que desonra o Estado, que destrói o Estado de direito, que amolga a Justiça gravemente e que faz do seu segredo e da investigação verdadeiras anedotas.

Por que é nunca vimos alguém da Justiça ou da polícia condenado por violar aquilo de que deve ser o guardião? Não se trata só de incompetência.

Conhece o Microsoft Outlook?



Não sei se conhecem o Microsoft Outlook. É um programa de agenda e de correio electrónico da Microsoft. Vem com o Office, que é a ferramenta mais comum que usamos. É um sucessor, se a memória me não trai, do Schedule+, que já era uma coisa catita nos anos '90. Gere de forma centralizada correio, tarefas, notas, calendário e agenda de contactos. Permite acumular dados, que é uma maravilha. E, depois, permite fazer buscas com rapidez. Ou seja, é uma preciosa ferramenta de arquivo.

Nos contactos, então, é muito útil. Junta nome e apelido, fotografia, moradas várias, telefones variadíssimos (casa, trabalho, telemóveis, assistente, etc.), pager, satélite, emails vários, webpage para quem tem, nick do Skype, empresa, cargo, data de aniversário e de casamento (se as soubermos), nome do cônjuge, alcunha... e por aí fora. Tem também um campo de notas aberto, onde podemos acrescentar o que queremos. Nestas notas, também acrescento, volta e meia, algumas observações, até porque sou um bocado despistado e, assim, julgo prevenir gaffes e esquecimentos: conheci no sítio tal; era casado com A - casou com B; tratou do assunto tal e tal; etc. Agora, com os blogues e o Facebook, também dá para acrescentar os respectivos URL. Ainda não o fiz, porque não sou assim tão organizado. Mas, qualquer dia, quem sabe... E permite agregar todos os contactos pelos grupos que quisermos ir criando: amigos, família, Benfica, actividade, Brasil, VIP, etc. 

Com o avanço das ferramentas informáticas e dos equipamentos, tudo se tornou mais fácil e mais rápido. A sincronização entre vários equipamentos destas preciosas agendas pessoais é a última "maravilha fatal da nossa idade": tudo actualizado, ao dia, do computador de mesa para o portátil, para o tablet, para o telemóvel, para o smartphone. Esse é o supremo sossego: assim, nunca se perde! Todos conhecemos essa sensação terrível de perda: perder uma agenda... porque nos roubaram a pasta, ou o telemóvel, ou o computador; ou, pura e simplesmente, porque o perdemos. É como perdermos anos de trabalho. Refazer uma agenda é um pesadelo! Com estas ferramentas, nunca mais.

Nem é preciso ser muito organizado ou particularmente obsessivo, para acumular estes dados. Vão-se juntando. Além disso, dá jeito: nunca se sabe quando vamos precisar desse contacto. E, se o utilizador valoriza os contactos e a informação, a ferramenta é do melhor que há. Imaginemos um vendedor, um comercial, um jornalista, um advogado, um gestor, um político, uma secretária... alguém que lide permanentemente com contactos e informações pessoais ou profissionais - não é preciso ser-se um "espião".

Veio-me isto à ideia diante do espalhafato na imprensa sobre os quase 4.000 contactos pessoais que estariam no telemóvel de mão do "ex-espião" Jorge Silva Carvalho e cujo "escândalo" tem alimentado várias primeiras páginas de puro sensacionalismo e clara intrusão. 

Lembrei-me de que, se me deitassem a mão ao telemóvel, eu também poderia dar títulos e folhetins assim. Não chego, é certo, aos 4.000... Há alguns meses, fiz uma "poda": deitei fora alguns contactos, o que me levou a reduzir de 3.127 para, salvo erro, 1.600 pessoas. Entretanto, já subiu outra vez 1.834. A ferramenta é assim: acumula e arquiva. E é, na verdade, muito útil. É para isso mesmo que serve.

Se o que a polícia encontrou no telemóvel do "ex-espião", que foi feito um alvo, é o que a imprensa tem publicado, a resposta é simples: Microsoft Outlook. Ou outra ferramenta parecida, pois há muitas no mercado. O "escândalo" aparece, às vezes, apimentado com a revelação de haver "ficheiros pessoais", o que bate certo: cada contacto pessoal é, na verdade, desagregável num vCard individual, um ficheiro *.vcf. A coisa é assim mesmo.

O escândalo real, aqui, é a devassa sem vergonha a que temos assistido. E é caso para ter medo. Eu, se fosse jornalista e tivesse uma boa agenda de contactos, modernizada e ágil, com as ferramentas do nosso tempo, tinha medo: se a polícia deita a mão ao telemóvel ou ao portátil e vai vasculhar a agenda... lá teremos um glorioso espectáculo de divulgação de fontes e de cruzamento de contactos publicado por aí para alimentar a concorrência e afundar uma credibilidade.

Esta é uma grande ameaça à liberdade. E ao fundamental direito de reserva dos registos pessoais. 

O mundo está perigoso. Quando não se pode confiar na polícia e na Justiça, pede-se protecção a que polícia e a que Justiça?

domingo, 29 de janeiro de 2012

Feriados? Pega lá e embrulha!


Há anos, ficou-me na memória uma entrevista de António Barreto em que, reflectindo sobre o nosso sistema político e a crise da representação parlamentar, rematava: «Os nossos deputados são escravos e têm mentalidade de escravos.»

Hoje, procurando imagens para ilustrar este post, dei-me conta do flagrante exagero do comentário: comparar a condição de deputado, por mais servil que seja, com a abominável condição a que foram reduzidos os homens e mulheres feitos escravos é um exagero óbvio. 

Mas percebe-se a ideia. E a carga da comparação. Corresponde, de resto, a uma crítica frequente ao modo como os deputados aparentam sujeitar-se sempre (ou quase sempre) a tudo o que lhes é imposto: sem informação, sem debate, sem qualquer processo sério de decisão colectiva. É daí que vem, aliás, a ideia generalizada da redução brutal do número de deputados, havendo mesmo quem ache que bastaria um só deputado por partido, ou até acabar com a Assembleia da República. Os deputados - diz-se - não representam coisa nenhuma e são mero "verbo de encher".

A questão dos feriados despertou-me este debate de novo. Mais do que esta ou aquela decisão concreta, não me conformo com o processo político seguido. Eu não sei se o PSD discutiu alguma coisa. No CDS, não soubemos de nada, no CDS não debatemos nada nas sedes próprias.

Ainda no começo de Dezembro, levantei uma série de questões. Escrevi, aqui, neste blogue: (1) 1º de Dezembro, Dia de Portugal; (2) Fazer as contas ao "custo" dos feriados;  (3) Temos feriados a mais?: e  (4) Sobre a extinção de feriados.

Manifestei também, no sítio certo, por escrito, algumas pretensões concretas. Queria obter: 
  1. Informação oficial sobre o ponto da situação da abolição de feriados. 
  2. Dados sobre os objectivos a atingir e porquê. 
  3. A ponderação já efectuada sobre os prós e contras da abolição das diferentes datas de feriados civis e feriados religiosos. 
  4. A avaliação dos motivos por que a mera eliminação de pontes não seria possível ou não atingiria os objectivos pretendidos, bem como da inexequibilidade da deslocação de algumas celebrações para o fim-de-semana mais próximo. 
  5. Informação sobre se a direcção do CDS já tinha posição sobre a questão, quando a tencionava tomar e como iria debater-se o tema internamente. 
  6. Releitura da nossa posição em debates anteriores sobre a matéria, nomeadamente aquando do último projecto das deputadas independentes do PS na legislatura anterior (2009/11): projecto de Resolução nº 136/XI
Não é pedir demais, creio eu. Ou seria?

Houve, na altura, intensa troca de mensagens a este respeito. Fiquei à espera. Passaram quase dois meses. Fui mesmo levado a pensar que o assunto teria passado... Até ao anúncio da passada quinta-feira, no rescaldo do Conselho de Ministros. Toma lá e embrulha!

A responsabilidade, aqui, não é - sublinho - do ministro da Economia. É dos partidos políticos, que têm responsabilidades próprias de representação politica e de maturação prévia das decisões. Têm mecanismos para isso e essa é, aliás, a sua útil função social permanente. São uma espécie de pulmão de respiração social - senão não servem para nada.

E é também responsabilidade dos deputados e grupos parlamentares, sobretudo numa matéria que, pelo simbolismo que lhe está associado, recomenda um tratamento ponderado da sensibilidade social e política. Não é nada difícil, aliás. Basta praticar o institucionalismo e accionar o funcionamento orgânico. Com precedência sobre as decisões; não a reboque e a toque de caixa.

No dizer de António Barreto, não sou escravo, nem tenho mentalidade de escravo. Senão viveríamos em ditadura. E não só da dívida, nem só da troika.

Sinais dos tempos



Há bocado, estacionando o carro no Campo Grande, abeirou-se de mim uma pessoa, a pedir. Acontece muitas vezes. Às vezes, ligo; outras vezes, nem por isso. Hoje, prendeu-me a atenção. 

Pedia-me ajuda, que tinha fome. Pedia-me uma moeda, para almoçar. Dei-lhe esmola. Reparei que estava relativamente composto. Tinha bom aspecto. Estava envergonhado. Falava baixo. A medo. Perguntei-lhe: «Está desempregado?...» Disse-me que sim, com as lágrimas nos olhos: «As pessoas olham para os cabelos brancos e acham que já não sabemos trabalhar.»

Perguntei-lhe se já tinha procurado ajuda nas instituições sociais. Que sim: «Fui à Junta de Freguesia e mandaram-me à Misericórdia. Fui à Misericórdia e mandaram-me à Segurança Social. Fui à Segurança Social e mandaram-me para a Junta de Freguesia...» Insisti ainda: «Então e o Rendimento Social de Inserção?» Disse-me que seriam 95 euros por mês... E fiquei até sem saber se os recebia, ou não.

Perguntei-lhe se era dali. Que não: «Não, senhor doutor. Vivo na Charneca da Caparica. Tenho que andar por aí, a ver se encontro quem me ajude.» 

Depois, perguntou-me ele: «Não é o Dr. Ribeiro e Castro?» Respondi-lhe que sim. Disse que me conhecia da televisão e mais umas coisas simpáticas. Achou-me muito mais magro e quis saber: «Não está doente, pois não?» Disse que não. Comentou: «Ah! Ainda bem.»

Perguntei-lhe qual era o seu ofício e que idade tinha. Respondeu-me: «Era cortador de carnes, mas o talho teve que dispensar pessoal.» E disse-me que tinha 58 anos. De novo com as lágrimas nos olhos, sussurrou: «Às vezes, sinto-me de tal maneira que me passam umas coisas pela cabeça...»

58 anos é também a minha idade. Dei-lhe uma palmada no braço. Desejei-lhe boa sorte. 

Tempos difíceis, estes. Muito difíceis.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Independência nacional


Num rápido apanhado, verifico que são dezasseis os Estados-membros da União Europeia cujo Dia Nacional - isto é, o principal feriado nacional - corresponde à comemoração da respectiva data da independência ou fundação nacional: Lituânia (16 de Fevereiro), Estónia (24 de Fevereiro), Bulgária (3 de Março), Grécia (25 de Março), Suécia (6 de Junho), Luxemburgo (23 de Julho), Eslovénia (25 de Junho), Bélgica (21 de Julho), Hungria (20 de Agosto), Eslováquia (1 de Setembro), Malta (21 de Setembro), Chipre (1 de Outubro), República Checa (28 de Outubro), Polónia (11 de Novembro), Letónia (18 de Novembro) e Finlândia (6 de Dezembro). Além destes, há mais dois que celebram o Dia Nacional em data equiparável à fundação nacional: Alemanha (3 de Outubro - reunificação) e Roménia (1 de Dezembro - unificação com a Transilvânia e formação da Roménia moderna).

Em síntese, 18 países em 27 Estados-membros da U.E. celebram o respectivo Dia Nacional na festa da independência ou da fundação do país.

Dos restantes dez, três são monarquias, que fazem comemorar o Dia Nacional na data oficial de aniversário do(a) soberano(a): Dinamarca, Holanda e Reino Unido. Outros dois países são Repúblicas que festejam esse dia associado à ideia de Liberdade, como os nossos 25 de Abril e 5 de Outubro: Itália (2 de Junho - República), França (14 de Julho - Tomada da Bastilha, Revolução Francesa). E há quatro outros que o celebram com outras referências: Irlanda (17 de Março, São Patrício, o santo patrono), Portugal (10 de Junho, Camões, o poeta nacional), Espanha (12 de Outubro, dia da Hispanidade, a descoberta da América por Colombo) e Áustria (26 de Outubro, neutralidade). Destes nove países cujo Dia Nacional não corresponde à respectiva independência, cabe sublinhar que há seis Estados cujo processo de formação histórica não corresponde de todo a uma ideia de "independência nacional" - Holanda, Reino Unido, Itália, França, Espanha e Áustria - e, portanto, não poderiam ter uma Festa da Independência em sentido próprio. 

Em nova síntese, portanto, 18 países em 21 (possíveis) Estados-membros da U.E. celebram o respectivo Dia Nacional na festa da independência ou da fundação do país.

O 1º de Dezembro, que celebra, com referência à Restauração de 1640, a Independência de Portugal é o mais antigo feriado nacional, assim continuamente celebrado desde o princípio da República e respondendo a um apelo patriótico lançado e repetido desde a segunda metade do século XIX. Agora, querem acabar com ele. Pode ser? Não pode. Creio mesmo que deveria passar a ser o DIA DE PORTUGAL, pondo-nos a par da esmagadora maioria dos países da União Europeia.

Uma última nota apenas. A formação de Portugal e a nossa própria existência corresponde à nossa independência no contexto da península e das Espanhas. Poderíamos comemorá-la com referência a três momentos: a Fundação, no século XII, com Afonso Henriques, separando-nos do Reino de Leão; o Interregno, no século XIV, resistindo ao Reino de Castela; e a Restauração, no século XVII, recuperando a independência depois de 60 anos de domínio dos Filipes e libertando-nos de novo dos vizinhos espanhóis. Destas três referências históricas possíveis, aquela que escolhemos há muito para celebrarmos, em feriado nacional, a nossa própria existência como país e como povo foi a do 1º de Dezembro. Está certo. Não podemos deixar de o fazer.

As próximas listas de deputados


Passou-me pela cabeça que o recrutamento para as próximas listas de deputados poderia ser assim. Por que diabo me lembrei eu disto?...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

PMA e barrigas de aluguer - a minha declaração de voto




Face à importância das matérias tratadas nestes projectos de lei, que foram debatidos no plenário da Assembleia da República na quinta-feira, 19 de Janeiro, e colocados a votação na sexta-feira, 20 de Janeiro, entendi apresentar uma declaração de voto, que foi entretanto entregue, nos termos regimentais, e será publicada no Diário. Incluo-a aqui:

DECLARAÇÃO DE VOTO
Votação dos projectos de lei n.ºs 122/XII/1ª (BE) e 137/XII/1ª (Pedro Delgado Alves et alii) e dos requerimentos sobre os projectos de lei n.ºs 131/XII/1ª (PS) e 138/XII/1ª (PSD)
Procriação Medicamente Assistida, incluindo a maternidade de substituição

1. Nas votações sobre os projectos de lei de alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que se propunham modificar o regime vigente para a Procriação Medicamente Assistida (PMA) e, entre outros pontos, introduzir a maternidade de substituição, votei contra os dois projectos de lei, em título, da autoria do Bloco de Esquerda e de deputados do Partido Socialista. E teria votado também contra os outros dois projectos, da autoria do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata, se não houvessem sido retirados da votação a requerimento dos seus autores, já após o debate na generalidade e imediatamente antes de serem votados pelo plenário. 
Quanto aos dois requerimentos de baixa à Comissão destes projectos do PS e do PSD, sem qualquer votação, discordo totalmente do expediente adoptado, susceptível de criar grandes equívocos na opinião pública, pelo que, de facto, não os votei: presente na sala, não teria votado, se o Regimento o permitisse; mas, estando na sala no momento de votar e face ao impedimento do Regimento (artigo 93º, nº 2), declaro acompanhar a abstenção por que decidiu votar o grupo parlamentar do CDS-PP, nos termos então oralmente declarados.

2. A matéria da Procriação Medicamente Assistida suscita diversas questões de grande sensibilidade quer para os pais que aspiram a ter filhos, quer para os filhos que assim são gerados e, bem assim, com relação a diversos valores sociais e humanos de referência. 
A lei adoptada em 2006 seguiu-se a longo processo e debate na sociedade portuguesa. Basta recordar como a primeira tentativa legislativa foi objecto de veto do Presidente da República, Jorge Sampaio, em 1999. E basta recordar também o prolongado debate em que o tema prosseguiu, chegando a merecer, em meados da década passada, uma iniciativa popular de referendo, que, todavia, não seria acolhida pela Assembleia da República. 
A lei que, em concreto, foi adoptada em 2006, apenas foi possível no seu dispositivo concreto, por vigorar, na altura, em Portugal, a maior maioria de esquerda de sempre, com maioria absoluta do PS (que podia, querendo, decidir sozinho) e um peso significativo à sua esquerda, por parte do PCP e do BE (sendo que este último partido prossegue uma conhecida agenda pró-activa em específicos aspectos da matéria).

3. Seja como for, a lei foi adoptada: Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho. 
Ora, a alta sensibilidade das matérias em apreço – que tocam no núcleo mais sensível da própria humanidade e da dignidade humana e em valores sociais fundamentais – aponta para a conveniência de estabilidade legislativa. Isto é, aponta para que as mudanças de legislação aconteçam após um relativamente longo período probatório e de sedimentação do regime jurídico, que permita claramente fazer novas avaliações e extrair conclusões relevantes que sejam solidamente diferentes daquelas que tenham norteado a sua adopção. 
É evidente que cada um tem concepções próprias, que terão sido acolhidas ou rejeitadas, total ou parcialmente, aquando da adopção da legislação em vigor. E é evidente também que a todos assiste o interesse e o direito de procurarem fazer avançar os seus pontos de vista. Mas o interesse colectivo, em matérias deste recorte e melindre, é o de alguma estabilidade legislativa, porque a sociedade portuguesa não pode dar de si própria a ideia de que muda de valores fundamentais e de quadros matriciais de referência todos os anos ou todas as legislaturas. Dizendo por outras palavras mais directas, estas leis são de tal natureza que não devem ser tratadas como bolas-de-trapos do debate político-partidário corrente.
Por isso, divergi, em geral, da própria oportunidade deste debate legislativo. 
É compreensível que o Bloco de Esquerda o abrisse através do Projecto de Lei n.º 100/XII/1ª – entretanto, retirado e substituído pelo PL 122/XII/1ª. Assim picou o ponto da sua agenda fracturante logo nos primeiros meses da primeira sessão legislativa desta Legislatura, repondo os pontos em que não obteve vencimento em 2006 e procurando ir um pouco mais longe. 
Mas já não considero compreensível que partidos do arco da governabilidade, como PS e PSD, se juntassem à mesma procissão – e, por isso, me manifestei contra isso e tentei que o não fizessem. 
Os factos posteriores e finais parecem, aliás, dar-me razão: primeiro, os projectos do PS e do PSD acabaram por ser retirados de votação; segundo, os projectos de lei levados a votos foram reprovados; e, terceiro, o único efeito do movimento político fracturante do BE foi o de efectivamente provocar divisões em todas as bancadas e coligações, com excepção do PCP. 
A dignidade dos valores em questão merece mais.

4. Ao defender a estabilidade legislativa, não quero dar ideia de que sou totalmente a favor da lei vigente, a Lei nº 32/2006, de 26 de Julho. Não sou. 
Considero-a um passo muito importante no que respeita à legalização da procriação medicamente assistida, a que muitos casais recorriam já, desde há algumas décadas, em Portugal, para vencerem problemas de infertilidade. E também para dotar de segurança jurídica os médicos que se dedicaram à medicina da infertilidade. 
Mas há aspectos específicos do regime estabelecido que me merecem discordância ética, jurídica e política. O CDS votou, aliás, como é sabido, contra essa lei, sendo eu na altura Presidente do CDS e assumindo inteiramente essa responsabilidade. 
Sou claramente a favor da procriação medicamente assistida, em casal, com reprodução homóloga, isto é, com recurso ao material genético da própria mulher e do próprio homem que, em casal, recorrem à medicina para superarem problemas de infertilidade. Creio que a PMA é uma grande resposta médica para estes casais, permitindo-lhes completar o seu projecto familiar em termos em que a filiação afectiva corresponde inteiramente à filiação natural, à filiação biológica. 
Mas, passado esse plano, em que a medicina está inequivocamente ao serviço e ao lado da natureza, deparo-me quanto à PMA, problema a problema, sucessivamente, quanto a cada uma de outras questões que se vão justapondo, primeiro com dúvidas, depois com reservas, enfim em oposição – no plano ético e, portanto, também no plano legislativo, isto é, político. 
Sou contra a procriação heteróloga. E sou contra o anonimato dos dadores de material genético, anonimato que viola um direito fundamental à identidade pessoal dos filhos que assim são gerados. 
Por outro lado, creio que a legislação portuguesa deveria também, como acontece noutros países da União Europeia, regular e limitar estritamente, nos processos de PMA, a geração de embriões para implantação, por forma a evitar o acumular infinito dos chamados “embriões excedentários” e o pesadelo ético, médico, social e político a que esse acumular dá lugar. Assim como acompanho todos aqueles que se opõem à investigação destrutiva de embriões humanos e que, em matéria de investigação com células estaminais, apontam para que o caminho é, inequivocamente, o da investigação sobre células estaminais adultas (de bem reconhecidas virtualidades e grande alcance científico e médico) e não sobre células embrionárias, isto é, com os embriões humanos. 
Penso, aliás, que foi impróprio que, em 2006, se apropriasse uma lei sobre a PMA para regular matérias referentes ao destino dos embriões excedentários e seu uso (e destruição) em investigação científica. Penso que seria mais correcto que o Estado português vencesse o medo ou o embaraço em estabelecer e definir um Estatuto Jurídico do Embrião Humano – algo que é exigido pela modernidade e imposto pela própria Ciência – e daí retirasse, depois, todas as consequências, em lugar de andar a definir normativos ad hoc sem consideração da questão na sua essência e no seu conjunto.
Mas, dito isto quanto aos meus pontos de afastamento relativamente à lei em vigor, isto em nada diminui as palavras que acima deixei quanto ao valor da estabilidade legislativa. Essas palavras aplicam-se-me também por inteiro.

5. Os quatro projectos de lei que foram, agora, apresentados visavam, em modos e graus diferentes, ampliar o recurso às técnicas de PMA, incluindo a maternidade de substituição (vulgo “barrigas de aluguer”), e refazer alguns aspectos do regime quanto aos embriões excedentários, renovando o seu uso em processos de investigação e inerente manipulação e destruição em processos científicos. 

6. Quanto às normas de alguns dos projectos (BE, PS e PSD) que se referem à investigação científica com embriões humanos, não careço de acrescentar mais nada ao que já disse. 
O meu pensamento é o de que a necessidade legislativa em Portugal é exactamente ao contrário: 
Limitar a produção de embriões; 
Definir autonomamente um estatuto jurídico do embrião humano, que passe a ser referência matricial; 
Canalizar o esforço investigatório para as células estaminais adultas, poupando os embriões humanos.

7. Quanto a admitir a procriação medicamente assistida fora de um quadro clínico de infertilidade, sou contra. Era o caso dos projectos do BE e do de alguns deputados do PS (Pedro Delgado Alves et alii). 
Creio, aliás, que haveria aí uma contradição nos próprios termos: não há algo que seja “medicamente assistido” em sentido próprio, onde não haja doença de infertilidade, isto é, falta de saúde reprodutiva em sentido próprio. 
Nesses casos de PMA sem infertilidade clínica, estaríamos certamente a regular técnicas artificiais de reprodução humana, mas tenho as mais sérias dúvidas sobre que, no sentido rigoroso, deontologicamente mais autêntico, pudéssemos sequer falar de medicina.

8. Quanto a admitir a PMA a mulheres sós, também não sou a favor, fosse para projectos de mães solteiras em sentido exacto, fosse no quadro de uniões homossexuais. 
Repito: a PMA, para mim, é uma resposta correcta e muito importante para ajudar casais a superarem a própria infertilidade – infertilidade clínica, infertilidade medicamente declarada – como homem e mulher, como pai e mãe, em casal. 
Não serve – isto é, não deve servir – para apagar o pai, nem para gerar filhos em quadros que são, por natureza das coisas, infecundos. 
Uma coisa é a medicina. Sou a favor. Outra coisa é a engenharia social. Sou contra. 
Ainda quanto às mães solteiras, não há dúvida de que qualquer mulher que o queira ser o pode ser – embora seja de observar que a maioria das mães solteiras não o desejavam ser; e a situação em que se viram resultou, muitas vezes, de quadros dolorosos, de quadros de abandono e de desrespeito humano e social, quando não de violência. 
Mas, seja como for, chegados a um plano de legislação sobre PMA, a questão não é a de saber se a mulher pode, ou não pode, ser mãe solteira – pode. 
A questão é a de saber se a medicina deve, ou não deve, ser posta ao serviço dessa escolha individual – e, a meu ver, não deve.

9. Por último, quanto às chamadas “barrigas de aluguer”, também sou contra. 
Revejo-me em todas as reflexões que foram feitas – nomeadamente pelas deputadas do CDS, Teresa Caeiro e Isabel Galriça Neto – quanto à intensidade da relação maternal que se estabelece numa mulher que gera no seu próprio ventre um filho de terceiros e à delicadeza psicológica, ética, densamente humana das relações assim geradas. O mesmo se passa, na perspectiva inversa, com a criança assim gerada: nove meses de gravidez são nove meses de gestação. Ou seja, há evidência bastante de que um útero não é só uma incubadora – é o útero de uma mãe.
E recordo também a infinidade dos problemas jurídicos e dos conflitos por solucionar a que vidas assim geradas poderiam, em abstracto, dar lugar, como vários têm chamado a atenção. 
Só isso chega, a meu ver, para afastar como crucialmente inconveniente a introdução desse regime em Portugal. 
Uma vida humana é, em si, simples: resulta do amor de um homem e de uma mulher. Não merece ser deliberadamente criada num psicodrama social, num embrulho psicológico denso, num novelo jurídico interminável. E isto, mesmo sem entrar sequer na questão de que a introdução da maternidade de substituição a título gracioso – como os projectos (BE, PS e PSD) unicamente procuravam agora –  seria a inevitável antecâmara para a futura legalização das “barrigas de aluguer” e o favorecimento dos negócios mais deploráveis e degradantes.

10. Duas reflexões a terminar.
Tenho o maior respeito por todos os casais que desejavam ter filhos e não podem. Sei o que é esse drama. E, nesta matéria, intensamente pessoal, sem prejuízo de declarar e defender os meus próprios valores, abstenho-me de qualquer juízo. 
Sei como a infertilidade é uma barreira duríssima à realização de componentes importantes da felicidade pessoal: o nosso próprio prolongamento noutra geração, como pai ou como mãe. 
Mas, ao contrário do que frequentemente ouço dizer, eu penso que ninguém tem o “direito a ter filhos”. Acho que a palavra não é “direito”. Não é nem a palavra, nem o conceito. Não é a palavra; e não é o conceito. 
Eu que, graças a Deus, fui pai, acho que nunca tive direito a nenhum dos meus filhos; e que não tenho direito a nenhum deles. Creio, aliás, falando da ideia e do conceito de “direitos”, que é mais o direito deles a terem pai, do que meu o direito a ter filhos. É deles o direito a terem pai e a terem mãe, tal como eu tive o meu direito a ter o meu pai e a minha mãe.
De pais para filhos, ninguém tem o direito a outrem, ninguém tem o direito sobre outrem. 
O Direito, a linguagem jurídica, tem uma insuperável dificuldade em subsumir nos seus quadros realidades humanas que são muito mais densas e muito mais ricas, tal como acontece nomeadamente com todas as relações familiares e, mais ainda, quando consanguíneas. O Direito não tem outro remédio senão procurar enquadrá-las o melhor que pode e sabe. Mas, para o fazer – e não começar a ofender, em vez de servir, a realidade humana –, o Direito tem que ter a humildade de reconhecer a limitação dos seus quadros conceptuais e da sua ferramenta.  
Por exemplo, eu creio que o casamento não é um contrato – é muito mais do que isso. A palavra “contrato” era apenas a coisa mais parecida de que o Direito Privado dispunha para o qualificar, quando as modernas leis civis quiseram enquadrar e regular o casamento. Mas todos – ou quase todos – coincidiremos em que o casamento não é da mesma ordem que a compra e venda, ou um mútuo, ou um comodato, ou um arrendamento ou aluguer, ou uma associação ou sociedade civil. É de outra ordem. 
Também por exemplo, é conhecido que, em matéria do chamado “poder paternal”, mesmo a doutrina jurídica clássica, já em parte ultrapassada, teve sempre que dobrar a língua e dizer que esse “poder”, esse “direito”, não é bem um poder, mas um “poder-dever”, um “poder funcional”, isto é, um “direito”, se assim se pode dizer, mais no interesse do seu destinatário do que no interesse do seu titular.
A vida humana é mais rica do que a quadrícula mental do Direito. E o Direito corre o risco de agredir a pessoa humana, em vez de a servir, como é a mais nobre vocação do Direito, quando desatemos a fazer ginástica com os vocábulos jurídicos e os seus conceitos instrumentais, em vez de observarmos atentamente as realidades humanas a que os aplicamos.
Quanto tratamos de filhos, o fundamental são os filhos, a pessoa deles, a sua absoluta integridade pessoal, desde a sua identidade plena à sua dignidade inviolável. Não há direito quanto a eles, não há direito sobre eles.
A medicina pode ser importante ajuda aos pais em falha de saúde reprodutiva, ou clinicamente assistida e verificada; mas a medicina, porque é medicina, não deve ser instrumentalizada, a meu ver, como uma engenharia de substituição. Nem a medicina, nem os serviços sociais.

11. Enfim, segunda reflexão, sobre a adopção. 
Em todos os quadros de PMA heteróloga e de maternidade de substituição, há uma componente implícita, não declarada, de adopção. Mesmo tratando-se de um filho gerado ex novo, o recurso técnico a material genético de terceiros ou a um útero alheio representa, em certa medida, o estabelecimento jurídico – e afectivo – de uma filiação que não é a filiação biológica, isto é, implicitamente de uma “adopção” parcelar, nos planos afectivo e jurídico. 
Ora, além dos outros problemas éticos e humanos inerentes a essas situações, eu creio que, assim sendo, então a resposta social mais correcta é a adopção propriamente dita.
Sabemos o drama das crianças por adoptar. E conhecemos a necessidade de maior sensibilização para o instituto da adopção. É importante ampliar, em vez de estreitar, a consciência a este respeito.
Por isso, penso que essa deve constituir também, sempre com forte sensibilidade humana, uma clara prioridade social, naqueles casos de casais com forte vocação parental e que quadros de infertilidade ou esterilidade privem de ter filhos (ou de ter mais filhos) biológicos.
A melhor alternativa social à filiação biológica é, penso, a filiação adoptiva.

Lisboa, Palácio de S. Bento, 20 de Janeiro de 2012

O deputado do CDS-PP,

José Ribeiro e Castro

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Liberdade de voto



Tem sido discutida na blogosfera e nas  redes sociais o facto de a direcção do CDS ter reconhecido aos deputados eleitos pelos CDS liberdade de voto nos recentes projectos de lei sobre revisão da lei de Procriação Medicamente Assistida, incluindo as chamadas “barrigas de aluguer” e a investigação sobre embriões. Num dos textos postos a votação, o Projecto de Lei n.º 137/XII/1ª, de Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira et allia, houve, assim, 1 deputado do CDS-PP que votou a favor deste projecto, 3 que se abstiveram e 19 que votaram contra, como era a posição do partido – e da maioria do grupo parlamentar. 

Não vou entrar, aqui, na discussão da votação de cada um, nem no debate havido a este respeito no interior do grupo parlamentar. 

Vou tão-só, neste post, esquematizar o quadro teórico de opções possíveis em matéria de acção individual dos deputados, uma matéria que interfere com o modelo de partido e com a ideia que cada um faz do modelo de partido e da representação política. 
Posição 1: O partido adopta posição oficial. Os deputados votam sempre com a posição do partido e não podem exteriorizar qualquer divergência.

Posição 2: O partido adopta posição oficial. Os deputados votam sempre com a posição do partido, mas podem ser autorizados a não participar numa determinada votação.

Posição 3: O partido adopta posição oficial, com posição mais ou menos marcada quanto ao fundo e à substância das questões.Os deputados votam sempre com a posição do partido, mas podem emitir declarações de voto para expressar a sua posição pessoal, incluindo divergência com a posição oficial do partido ou melhor substanciação das posições de cada um.
Posição 4: O partido adopta posição oficial ou o grupo parlamentar define orientação de voto, com posição mais ou menos marcada quanto ao fundo e à substância das questões. Os deputados, individualmente, podem votar em sentido diverso e, por maioria de razão, apresentar as respectivas declarações de voto.
Posição 5: O partido não adopta posição oficial, nem o grupo define qualquer orientação. Cada deputado, individualmente, decide como votar e, por maioria de razão, a declaração de voto que apresente, ou não.
A posição 1 é de estrita disciplina de voto. As posições 2 e 3 são de disciplina de voto, com liberdade de posição pessoal. As posições 4 e 5 são de liberdade de voto

O CDS-PP, habitualmente, sempre se situou na posição 3 – algumas vezes, na posição 2. O PSD, habitualmente, nas questões consideradas "de consciência", sempre se situou na posição 4, embora variando as suas nuances: posição de fundo tendencialmente pouco marcada e ora com posição definida pelo partido, ora (mais frequentemente) pelo grupo parlamentar.

Nos últimos anos, o CDS-PP, depois de ter dado sinais (não só estritamente nas questões "de consciência") de preferir posições de fundo menos marcadas, chegou, agora, quanto às questões "de consciência", à posição 4, a posição habitual do PSD. Foi essa a posição comunicada em nota e aplicada na sexta-feira passada, na votação dos projectos de lei sobre a PMA. 

Há quem goste. Há quem não goste. Para mim, não é uma questão de gostar, ou não gostar. É o que isso representa para o modelo de partido.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Ou há moralidade...



Infelizmente, a polémica em torno das recentes declarações do Presidente da República sobre a insuficiência das suas pensões para as suas despesas não dá mostras de ir apagar-se. Numa semana em que o acordo de concertação social foi importante factor para levantar o moral num contexto de crise muito exigente, esta querela pública só serve para desmoralizar. Não vou chover no molhado. Sobre as declarações em si, já tudo foi dito. O pior pode ser o resto.

A curiosidade pública sobre a matéria não pode separar-se do que se passa - e passará - com os subsídios de férias e de Natal dos funcionários e reformados do Banco de Portugal. É conhecida a querela latente a esse respeito, uma vez que o BP procura esquivar-se ao paradigma geral definido pelo OE 2012 para este ano e o próximo. Os principais partidos, incluindo a maioria PSD/CDS, pressionam o BP no sentido da igualdade de tratamento. Soube-se, entretanto, que um dos subsídios já foi pago aos funcionários do BP. E, ainda ontem, Teodora Cardoso, administradora do BP e próxima presidente do novo Conselho das Finanças Públicas, insistia em defender um regime diferenciado. 

Enquanto a igualdade de tratamento não for estabelecida, a pressão não baixará sobre o Banco de Portugal - e reflexamente sobre o PR, um reformado do BP.

Há dias, o PÚBLICO noticiou que «a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e o Instituto de Seguros de Portugal (ISP), dois supervisores financeiros nacionais, vão cortar os subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores, cumprindo a imposição do Governo.» E acrescentava: «A CMVM não quis fazer comentários sobre o tema, mas o PÚBLICO apurou que o supervisor vai proceder à eliminação dos subsídios em 2012 e 2013. Isto apesar de estar sujeita à legislação internacional e de gerar receitas próprias, sem direito a financiamento do erário público.» Por outro lado, «O ISP respondeu que "irá dar cumprimento ao quadro legal em vigor", cortando o 13.º e 14.º mês.»

Este facto aumenta ainda mais a forte exposição do Banco de Portugal perante a opinião pública, quanto à excepção que quer proteger para os seus, mesmo recordando, como a notícia do PÚBLICO, que «num comunicado emitido na semana passada, o Banco de Portugal garante que irá proceder a cortes "equivalentes" nos rendimentos e regalias dos seus funcionários.» [Pode ler aqui o comunicado do BP.]

Não foi esquecida a forma crítica como, logo em 19 de Outubro, na apresentação do pacote de austeridade para 2012/13, o Presidente da República logo reagiu publicamente contra o corte dos subsídios de férias e de Natal anunciado pelo Governo - o que, posteriormente, silenciou, apesar de várias vezes desafiado a não promulgar o Orçamento de Estado 2012. E é talvez essa memória, nunca apagada, da discordância desabafada por Cavaco Silva, que leva Passos Coelho a recordar enfaticamente: «Todas as pessoas, independentemente da posição que ocupam, fazem sacrifícios importantes, sejam aqueles que têm reformas maiores sejam os que têm mais pequenas. Os sacrifícios têm de ser repartidos por todos. Não há ninguém que fique de fora.» Fosse qual fosse o espírito do primeiro-ministro, a verdade é que essa a razão para a interpretação e o destaque que estas declarações mereceram da generalidade da imprensa, como se vê no DN, no PÚBLICO e no JN.
O que quero dizer?

Isto: além do falatório desagradável sobre as pensões do Presidente, há o risco de a questão dos subsídios do Banco de Portugal para os seus funcionários e reformados servir para cavar erosão entre o Presidente e o Governo/maioria, num sem-fim de dichotes, perguntas, respostas, interpretações e intriga. 

sábado, 21 de janeiro de 2012

Sindicalismo de concertação



Fui fundador da FTDC - Federação dos Trabalhadores Democrata-Cristãos. Fui o autor material do seu Manifesto de Fundação. É um dos aspectos menos conhecidos do meu currículo, mas um dos que mais me orgulho.

Estávamos em 1978, no rescaldo das lutas contra a unicidade, da crise do movimento sindical e da "Carta Aberta". Estava a constituir-se a UGT - União Geral de Trabalhadores. A tendência sindical personalista democrata-cristã fez parte desse movimento de democracia sindical, que rasgou uma via própria contra a hegemonia da CGTP-Intersindical. Os sindicalistas democrata-cristãos estavam sobretudo na função pública, nos bancários e nos professores. Mas havia-os noutros sectores ainda: têxteis, rodoviários, etc.

O modelo democrata-cristão é claramente contrastante do sindicalismo mais tradicional entre nós, de matriz comunista ou esquerdista, historicamente revolucionário, baseado na luta de classes e virado para a confrontação. Na linha da doutrina social da Igreja, o que sustentamos é um sindicalismo de concertação, como o que tão boas provas deu na Alemanha e tem também bons exemplos entre nós - não por acaso, a Auto-Europa, por exemplo.

Ocorreu-me a importância do regresso e do reforço dessa linha, nesta semana em que, de modo corajoso e patriótico, a UGT assinou o acordo de concertação social. A lucidez e a responsabilidade da UGT merecem ser aplaudidas. Mas importa entender o passo da UGT também como uma chamada. Os trabalhadores portugueses deveriam corresponder ao sinal e engrossar as fileiras da UGT.

Uma coisa é estarmos dispostos a suportar e partilhar os sacrifícios que a situação do país exige, a fim de superar a exaustão financeira e o aperto económico, lançando novas bases e novo quadro para o crescimento e o emprego. Outra coisa bem diferente é aceitarmos e favorecermos reformas e mudanças que levassem à destruição completa do modelo social e à criação de um quadro injusto, totalmente desregulado e socialmente desequilibrado. Por outras palavras, a gestão da crise é marcada pela sua transitoriedade - passado o aperto, importará estar em condições de retomar a senda do progresso social. Reformar sim, mas para melhor - um quadro novo mais sustentável e sólido, com dinamismo económico e justiça social.

O que fará, em última análise, a diferença entre um cenário e outro será a força e o prestígio do sindicalismo democrático, bem como a capacidade de este atrair e enquadrar as novas gerações num sindicalismo novo, ajustado ao quadro da economia moderna. Um desafio enorme - que vale bem a pena. Com sindicatos democráticos fortes, os que vivemos do trabalho poderemos aspirar a um futuro com crescimento e justa repartição da riqueza. Sem eles, será enorme o risco de sermos presa fácil do oportunismo económico e da anarquia financeira. 

Está na hora, por conseguinte, de engrossar a UGT. Está na hora de dar mais músculo ao sindicalismo democrático. E pode ser também a hora da FTDC. Para fortalecer o sindicalismo de concertação. Para preparar e garantir o futuro.

O projecto que nunca existiu

[NOTA: este post enferma de um erro de informação e de pressupostos errados. Não está actualizado. Leia os comentários por favor. JRC - correcção às 20:42 de 22-jan-2012] 


Entre as várias manobras que rodearam o processo legislativo sobre a revisão da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), uma há que merece ser aprofundada. Tratou-se de um truque quanto ao Projecto de Lei nº 137/XII/1ª, da autoria de alguns deputados do PS, encabeçados por Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira - o texto conhecido como "projecto da JS", para o distinguir do projecto oficial do PS.

Mesmo em cima da votação, a Presidente da Assembleia da República anunciou que iria votar-se o projecto, mas, segundo tinha sido informada, amputado de uma sua parte. Deu a palavra ao primeiro subscritor para esclarecer e confirmar. E o deputado Pedro Delgado Alves informou o plenário de que, efectivamente, os autores retiravam do projecto a parte relativa à maternidade de substituição. [Será importante, logo que possível, ler as palavras exactas proferidas na altura. E obter outros pormenores processuais.]

Espantoso! Absolutamente espantoso. Não me lembro de ter assistido - e menos ainda, participado - em coisa assim. O facto é que, talvez surpreendidos pelo insólito da situação, ninguém reagiu. E a presidente pôs à votação o projecto, que seria reprovado, nos termos que a Lusa/EXPRESSO relata:
Já no que respeita ao projeto da JS, tendo como primeiro subscritor o deputado Pedro Alves - e que, tal como o do Bloco de Esquerda, visava alargar o universo dos beneficiários de técnicas de PMA -, a rejeição aconteceu por menor margem em termos de números e a votação até teve a originalidade de colocar ao lado de bloquistas e da generalidade da bancada do PS o deputado do CDS João Rebelo.
O projeto da JS foi rejeitado pela direção da bancada do PS, por todos os deputados do PCP e pela maioria dos deputados do PSD e do CDS. 
Este diploma contou com o apoio de todos os deputados do Bloco de Esquerda e do Partido Ecologista "Os Verdes", de 37 deputados do PS, para além do democrata-cristão João Rebelo.
O projeto da JS mereceu a abstenção de oito deputados do PSD (Teresa Leal Coelho, Emídio Guerreiro, Paula Cardoso, Joana Barata Lopes, Leitão Amaro, Sérgio Azevedo, Mónica Ferro e Cristóvão Norte), de três do CDS (João Viegas, Mesquita Nunes e Michael Seufert) e de 17 do PS (Laurentino Dias, Miguel Freitas, Vieira da Silva, Fernando Medina, Pedro Marques, Pedro Farmhouse, José Lello, Alberto Martins, Vitalino Canas, Filipe Neto Brandão, Hortense Martins, Acácio Pinto, Eurídice Pereira, Sónia Fertuzinhos, Luís Salgueiro, António Serrano e Jorge Fão).
A questão, porém, é outra. Esta votação foi válida? Ou a votação tem que ser considerada nula, senão mesmo inexistente?

Não se sabe sequer se o requerimento para "modificação" do projecto de lei em cima da votação foi escrito ou meramente oral, nem quais os respectivos termos e fundamentação. Mas a Assembleia da República não podia votar um texto diferente daquele que dera entrada, bem diverso do que estivera em discussão na véspera e cujo teor final não foi distribuído, nem estava na posse de ninguém no momento de votar. 

O artigo 122º do Regimento prevê o cancelamento de uma iniciativa, isto é, que, até ao momento da votação da generalidade, os autores podem retirar um projecto. Mas não prevê - nem, digo eu, poderia prever - este tipo de improvisação, este tipo de manobra em cima do joelho. Ou seja, deverá entender-se que o projecto foi retirado pelos autores - o que podiam fazer. Mas não pode entender-se que, totalmente fora de prazo e com grave atropelo processual, foi apresentado outro com teor diferente, o que o Regimento não consente naquele tempo e naqueles termos. E, se assim for, a votação feita sobre um projecto que nunca existiu deve ser declarada nula ou, mais que isso, considerada inexistente.

Os experientes e qualificados juristas Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira deverão ser, aliás, os primeiros a reconhecê-lo espontaneamente. Se não, que dirão os seus alunos?

Pode o Parlamento em Portugal votar improvisos? Não pode! "Penso eu de que...".

Erro? Ou manipulação?


João Pedro Henriques é um experimentado jornalista parlamentar. Tem muitos anos de Assembleia da República e, reconhecidamente, boas fontes. 

Hoje, no DN, na secção "Política" (p. 12), escreve o seguinte na coluna "Elevador", pondo uma seta para cima por debaixo da foto e do nome de Francisco Louçã, líder do Bloco de Esquerda:
Por iniciativa do BE, a que se viria a juntar o PSD e o PS, o Parlamento legalizou as barrigas de aluguer. Pôs na lei algo que já era uma realidade. E fê-lo de forma pacífica, com a Igreja calma e os radicais Pró-Vida isolados.
Eu, que sou deputado e participei nas votações, não me dei conta disto. Não é isto que eu sei e conheço. Dos quatro projectos apresentados, apenas dois foram votados - e ambos reprovados. Os outros dois baixaram à Comissão sem votação. Mas não foram aprovados. De todo. Está a querer-se passar a ideia de que passaram, o que não é verdade. A menos que João Pedro Henriques, jornalista bem informado e repórter experiente, saiba e esteja ao corrente de coisas que deputados ingénuos, como eu, que acreditamos nas regras, na democracia e na transparência, não sabemos.

O processo legislativo em torno destes projectos de lei foi do mais deplorável a que já pude assistir em termos processuais. Um festival de trocas e baldrocas, de malabarismos e peripécias, manobras regimentais e truques de última hora. O manobrismo político no seu pior. 

A realidade é que as "barrigas de aluguer" não foram aprovadas, nem introduzidas na lei portuguesa. Ou haverá mais manobras já combinadas, por detrás da cortina?

A breve nota de João Pedro Henriques é apenas um erro? Todos erramos. Ou sinal e eco de mais manipulação ainda? Há sempre quem saiba dos segredos. O futuro próximo dirá.

Fracturantes - 5; Unidade - 1.




Quem se lembrasse do clássico "Planeta dos Homens", de Jô Soares e companhia, nos anos '80, anteciparia com mais facilidade o que se passou por estes dias na Assembleia da República, em torno dos projectos da PMA e "barrigas de aluguer". E não tem dificuldade nenhuma em compreender como tudo acabou, ontem, sexta-feira, dia das votações.

Jô Soares, em 1980, criou um célebre personagem, o Dr. Sardinha, que parodiava o então ministro da Agricultura brasileiro, Delfim Neto, com receitas directas e infalíveis: “O abacate não abacateia? Então, o chuchu tem de chuchuzar.” Ao mesmo tempo, era sabido que “o abacaxi está abacaxizando e a uva, uvando”.

O Bloco de Esquerda desenterrou a típica agenda fracturante, primeiro com o PL 100/XII/1ª, depois substituído pelo PL 122/XII/1ª. Ora, tendo quase toda a gente decidido fazer-lhe o jeito e entrado no baile, ninguém pode surpreender-se que acontecesse o que aconteceu: as fracturas foram gerais. Analisando a estratégia do BE pela lógica infalível do Dr. Sardinha, “o fractureiro fracturiza”. Elementar.

A imprensa online destaca as divisões gerais, que atingiram fortemente PS e PSD - que se puseram particularmente a jeito - com uma razia mais acentuada na bancada socialista. Mas as divisões, em maior ou menor grau, acabaram por ser gerais: o movimento certeiro dos 8 deputados do Bloco levou a que se dividissem [1] a CDU (PCP para um lado, PEV para outro), [2] o PS, [3] a maioria, [4] o PSD e [5] o CDS. Atendendo a que somente a bancada do PCP resistiu inteiramente unida ao lance bloquista, o resultado foi este: Fracturantes - 5; Unidade - 1. Eficaz. Seria difícil melhor pontaria. 

A notícia do EXPRESSO online, com fonte na LUSA, é a mais evidente, fazendo extenso relato das divisões acontecidas. Mas o eco foi naturalmente geral, como se lê no DN, no jornal i, no PÚBLICO, no CORREIO DA MANHÃ, etc. Além de que as deploráveis manobras processuais de última hora geraram sérias perturbações de percepção pública. 

O PÚBLICO, por exemplo, inventa que PSD e CDS tinham um projecto conjunto que baixou à comissão. Não é de todo verdade: o projecto foi só do PSD; e o CDS votaria contra, se este projecto do PSD não tivesse escapado pela esquerda baixa, ao lado do PS. 

E o CORREIO DA MANHÃ titula «'Barrigas de aluguer' discutidas na especialidade», desenvolvendo que «os projectos do PS sobre as excepções à proibição de recurso à maternidade de substituição, vulgarmente conhecida como ‘barrigas de aluguer’, e do PSD sobre técnicas de procriação medicamente assistida vão ser discutidos na especialidade a pedido dos dois partidos» - o que também não é verdade. Só há debate na especialidade sobre o que tenha sido aprovado na generalidade, o que não aconteceu de todo. Mas, na cabeça dos seus mentores, a manobra destinou-se a criar aquela ilusão, sem custos; e, pelo menos junto dos menos atentos (ou mais manipulados), que não sabem de leis, nem de Regimentos, poderão consegui-lo. Escapar e confundir foi o que buscaram com o truque da "baixa à comissão", para enganar gregos e troianos. Aos gregos, dirão que "não passou nada"; aos troianos, prometerão que "passar-se-á tudo". Pouca ética. Grande baralhada.

Para o BE é que foi uma bolada e pêras. Como diria Jô Soares... de facto, “o fractureiro fracturiza” mesmo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

PGV - parte 2


Ao modo de grandes sagas do cinema (Guerra das Estrelas, Rambo, Rocky, Missão Impossível, Die Hard) também o PGV - Parlamento Grande Vitesse teve hoje a segunda parte. Em São Bento, foi uma triste fita.

Num manobrismo parlamentar do pior recorte, à última hora, o PS e o PSD requereram a baixa à Comissão sem votação dos projectos de lei que haviam apresentado para revisão da lei da Procriação Medicamente Assistida, no baile que havia sido aberto pelo Bloco de Esquerda. Eu, por exemplo, que queria votar contra, já não pude fazê-lo, tal como muitos outros. Assim, acabaram por só ser votados - e chumbados - o projecto de lei do BE e o de alguns deputados do PS. Aliás, também este último, noutra manobra de último segundo, foi alterado oralmente, sendo expurgado da parte referente à chamada "maternidade de substituição". 

É deplorável que tanto o PS, como o PSD se escudassem num puro truque regimental, protegido por uma  longa praxe parlamentar, para evitarem a clarificação política a respeito de questões que ajudaram demasiado a provocar e a engrossar. Compreendo muitíssimo bem o tremendo embaraço e as grossas dificuldades em que se sentiram. Mas, por isso mesmo, o melhor era que não tivessem entrado sequer na procissão do Bloco de Esquerda. Como eu sempre disse - e diligenciei para evitar.

Dirão muitos: do mal, o menos. E, quanto ao fundo das questões, para já, é verdade: não foi alargada a PMA, não foram introduzidas as "barrigas de aluguer" e não foi mais liberalizada a investigação destrutiva de embriões. O que devia ter acontecido de uma forma clara e não escusa e obscura. A "maioria de aluguer" que estava a ser preparada retirou e atirou a toalha para o ringue. O PGV descarrilou. Mas o processo político e a seriedade da tramitação legislativa levaram mais umas valentes amolgadelas.

Os que se se retiraram da arena em cima do "gong" saíram-se  muito mal. E deixam ficar pior o prestígio parlamentar. 

É possível tratar questões da maior seriedade e de enormes implicações humanas e sociais com este tipo de ligeireza, superficialidade e manobrismo processual? Não, não é.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

PGV - o Parlamento "Grande Vitesse"


Não chegámos a ter o TGV cavalgado por Sócrates, que nem no Poceirão encalhou. Em contrapartida, temos o Parlamento acelerado, o Parlamento TGV, o Parlamento que carimba as coisas a correr: o PGV - "Parlement à Grande Vitesse".


Hoje, foi uma evidência disso. 

Discutiam-se quatro projectos de revisão da lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), da autoria do BE, do PS (dois projectos: um oficial, outro da JS e mais alguns deputados) e do PSD. São várias as questões complexas que, no seu conjunto, esses projectos provocam: ampliação da PMA a mulheres sós; ampliação da PMA a uniões homossexuais; possibilidade de recurso à PMA sem diagnóstico de infertilidade; introdução da possibilidade de recurso à maternidade de substituição, vulgo "barriga de aluguer"; liberalização ainda maior do uso dos embriões "excedentários" para investigação científica.

Pois bem. No plenário, o debate não chegou a demorar mais do que uma hora mal medida! Os partidos deste debate - PSD, PS e BE - passaram por este debate como cão por vinha vindimada. Sinal de embaraço geral? Sintoma de desconforto? Má consciência por uma clara fífia de agenda político-legislativa? 

A coisa não se compreende, a começar pelo Bloco, que abrira a romaria e marcou a agenda. Mas fica também muito mal aos outros envolvidos (os dois PS e o PSD) e, sobretudo, deixa mal a Assembleia da República. Apenas se compreende a actuação de CDS e PCP, que marcaram as posições próprias.

O Parlamento tem uma função política e social de sintonia com a sociedade. Se os debates parlamentares são obscuros e fugazes, a sociedade não entende. Em matérias tão carregadas de significado, de valores e de consequências, o debate legislativo deveria durar dois ou três dias, para que todos os pontos de vista pudessem ser ouvidos e ponderados, as opiniões fossem integralmente confrontadas, todos os argumentos se percebessem, a voz da sociedade fizesse ouvir-se nas diferentes incidências, a opinião pública pudesse entender e assimilar a discussão e, fosse qual fosse o resultado, o país pudesse entender o regime que viesse a ficar estabelecido. Hoje... nada disso!

No princípio da Assembleia da República, era assim. Lembro-me de grandes, extensos e profundos debates sobre a Reforma Agrária, o Arrendamento Rural, a reforma do Ministério Público, o Serviço Nacional de Saúde, etc. Depois as coisas foram evoluindo e sendo sucessivamente formatadas, até chegarmos a este extremo do debate legislativo "tipo-bitoque". Isso é muito mau. Não o digo apenas para as leis de hoje, mas para outras. Pode discutir-se a nova Lei do Arrendamento assim? Podem rever-se leis de combate à corrupção assim? Pode reformar-se o quadro das leis laborais assim?

É preciso deixar respirar os grandes debates legislativos. Alguém aceita, por exemplo, que as "barrigas de aluguer" possam vir a ser introduzidas em Portugal, no quadro de um debate tão pobre, tão fraquinho, tão clandestino, tão fugidio, tão PGV, como tivemos hoje? Podemos aceitar processos que enfraquecem, senão destroem mesmo, a própria legitimidade social das leis?

Nem de propósito, o jornal "Público" destacou, hoje, em primeira página, que «o primeiro grande estudo sobre a percepção da democracia em Portugal aponta para a existência de uma "desconsolidação" do sistema democrático», acrescentando que «apenas 56% dos portugueses consideram que "a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo".» - estudo "A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos", da autoria de António Costa Pinto, Pedro Magalhães, Luís de Sousa e Ekaterina Gorbunova.

O debate parlamentar do dia de hoje é uma das explicações para esse fenómeno preocupante: o afastamento da sociedade relativamente ao Parlamento, e vice-versa, só servem para alienar a população da democracia.